sexta-feira, 9 de outubro de 2020

A fome em tudo

Em se tratando de pobreza, não há fator mais provável de saltar aos olhos  do que o da privação de alimentos. Comumente a fome é vista como causa e consequência da pobreza, ou seja, como sinônimas. Não à toa linhas de pobreza muitas vezes são definidas com base em orçamentos mínimos para aquisição de uma cesta de alimentos de subsistência. Outrossim, este entrelaçamento entre pobreza e fome é uma visão compartilhada pelas Nações Unidas, que nos seus Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (número 2) incluiu metas de redução conjunta de pobreza e de fome. Segundo esse organismo internacional, no último ano, a fome atingia ainda 820 milhões de pessoas no planeta (ONU News).

Recentemente, o Programa Mundial de Alimentos, agência das Nações Unidas para combate à fome, ganhou o Nobel da Paz de 2020, por “seus esforços de combate à fome, por sua contribuição para melhorar as condições para a paz em áreas atingidas por conflitos e por agir como força-motriz dos esforços para prevenir a fome como uso de arma de guerra e conflito” (Nobel da Paz 2020). Domesticamente, tem se afirmado que o Brasil, que havia deixado o Mapa da Fome em 2014, corre risco de voltar a essa classificação em razão do aumento da extrema pobreza trazida com a pandemia (Brasil no Mapa da Fome).

A despeito da importância do problema nos dias atuais, a indagação que se lança é se a fome realmente possui hodiernamente esse impacto na pobreza da população mundial, defendido comumente. No jargão acadêmico, a pergunta seria se a fome, ou má nutrição, configura-se em uma armadilha que mantém as pessoas na pobreza? Na linguagem popular, armadilha é uma situação em que não se pode sair com os recursos próprios à disposição. Em economia, o significado é similar e, no presente caso, encontra o sentido de que a pessoa em situação de pobreza, por ser pobre, não come o suficiente e, em não comendo, não consegue ser produtivo, o que a impede de ganhar um salário maior e, assim, permanecendo pobre.


Em seu livro Economia da Pobreza (2012) , os laureados pelo Nobel em 2019, o casal economista, o indiano Abhijit Banerjee e a francesa-estadunidense Esther Duflo, defende que atualmente a maioria das pessoas no mundo não estão mais dentro de uma zona de armadilha de pobreza como no passado. À exceção de desastres naturais e conflitos humanos como guerras, todos podem, mesmo os mais pobres, comer o suficiente para realizar um trabalho produtivo e escaparem da pobreza. O livro foi escrito antes da atual crise de saúde da Covid-19 e, certamente, ela se enquadraria na classe dos desastres naturais excepcionalizados pelos autores. Portanto, o que segue são análises realizadas pertencentes a situações de normalidade diferentes de guerras ou crises pandêmicas.

O tema é importante para desmistificar certezas de senso comum no combate à pobreza e as consequentes elaborações de políticas públicas, no sentido de que a debelação da fome deve ser algo priorizado. É conhecido que programas de distribuição de alimentos, tais como a doação de cestas básicas ou a implementação de restaurantes comunitários, geralmente podem distorcer preços de mercado, redundam em ineficiências (em comparação à transferência de dinheiro) e envolvem uma logística muito complicada, principalmente em grandes territórios e com a diversidade cultural alimentar decorrente. Devemos trazer à memória o fracasso do Programa Fome Zero em 2003, que foi substituído pelo Programa Bolsa Família. Seria ainda válida essa estratégia para combater à pobreza nos dias atuais, considerando que recursos devem ser bem aplicados, tendo em vista as muitas alternativas?

Corajosamente, os dois economistas colocam em xeque o fato de ainda existir fome para cerca de um bilhão de pessoas e constroem uma argumentação sólida no sentido oposto, trazendo teoria e exemplos em países como Índia, China e outros países asiáticos e africanos.

O primeiro pressuposto que é logo derrubado pelos estudiosos é o de que a pessoa em situação de pobreza decide comer o quanto é possível, dado os recursos que lhe estão disponíveis, suposição esta que se fosse verdade, indicaria a necessidade de um esforço para vencer a armadilha de pobreza. No entanto, desvelam que mesmo as pessoas em situação de extrema pobreza não têm investido todos seus recursos em comida. E esse comportamento não tem sido devido à necessidade de gasto em outros itens inevitáveis, tais como moradia, roupas ou remédios, mas em despesas supérfluas como álcool, cigarro e até festas.

Na base de dados com 18 países pobres trabalhada pelos estudiosos, alimentação correspondia de 45 a 77% do consumo entre os extremamente pobres. Além disso, mesmo entre os mais necessitados, cada dinheiro extra auferido não se convertia todo em gastos com comida. Por exemplo, no estado de Maharashtra na Índia, mesmo entre um público mais pobre, cada 1% de aumento das despesas gerais implicava apenas 0,67% de aumento de gastos em comida.

No Brasil, consultando a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2018, nas famílias com renda familiar per capita de até dois salários mínimos, o gasto médio com alimentação é de 22%, ao passo que é de 0,5% com pacote de TV, internet e telefone; de 1,7% com recreação e cultura; de 0,7% com fumo; de 1% com serviços pessoais de beleza; e de 1,5% com despesas diversas, como jogos, apostas, cerimônias e festas.

Ainda segundo os autores, ainda que se gastem os recursos a mais com alimentação, as decisões das pessoas mais pobres não têm recaído sobre opções de alimentação mais calóricas e nutricionais, pois, ao contrário, o que tem movido essas decisões é o paladar. Ou seja, em função do paladar, elas têm optado por alimentos mais caros, mas que proporcionam menor ingestão de calorias. Na China, essa preferência por calorias não seria prioridade entre os domicílios urbanos, mas sim a obtenção de alimentos mais apetitosos e de maior custo por caloria.

Essa situação não é surpreendente ao se verificar o caso do Brasil. Basta se observar, nesses rincões do Brasil, o que acontece quando um beneficiário do Bolsa Família faz nas redondezas de uma agência em que efetuou o saque do benefício. Toda sorte de comidas de baixo conteúdo calórico e nutricional são compradas de imediato antes mesmo de se cruzar a rua: balinhas, algodão doce, biscoito, etc. O pobre tem escolhido a comida não pelo preço ou valor nutricional, mas pelo sabor. O desejo de satisfação rápida inibe o processo decisório racional sobre o melhor uso do recurso financeiro. E as compras por impulso ganham espaço e se efetivam, podendo impactar na aquisição de outros itens que poderiam ser de maior necessidade para aquela família.

Um outro exemplo trazido pelos autores é o puzzle da Índia, cuja população tem apresentado obesidade e diabetes crescentes, não obstante a queda de consumo de calorias per capita. Mais de três quartos da população daquele país viveria em domicílios com consumo diário per capita de calorias menor do que 2.100 calorias nas áreas urbanas e 2.400 nas áreas rurais, valores estes parâmetros mínimos requeridos. Inclusive, para qualquer faixa de renda, inclusive as mais pobres, a proporção do orçamento dedicado à alimentação tem caído no país.

No Brasil, o fenômeno da obesidade também ocorre entre os mais pobres e surpreende o senso comum e causa controvérsias políticas. É conhecido o episódio em que Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, por meio da POF 2002-2003, identificou que 40,6% dos brasileiros estavam obesos e que a pobreza no Brasil não se manifestava mais pela fome, resultado que foi desacreditado pelo Presidente da República à época (IBGE contesta declarações do presidente sobre a fome).

Dando continuidade à sua análise, os autores admitem também o pressuposto da racionalidade de que a pessoa em situação de pobreza sabe o que faz, ou seja, se quisesse ser produtivo e aumentar seus ganhos para assim comer mais, ele o faria. Mas como isso explicaria a queda de consumo calórico citado anteriormente? Uma hipótese investigada por eles poderia ser o fato de que comer mais nos dias de hoje não mais proporcionaria ganhos de produtividade e assim não haveria armadilha de pobreza calcada na fome.

Atualmente, a maioria das pessoas possuiriam o suficiente para comer. Graças a séculos de avanços na agricultura e de intercâmbio de alimentos entre os continentes, a disponibilidade de comida é capaz de alimentar cada um no planeta. Segundo os autores, em 1996, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) afirmou que a quantidade de comida seria suficiente para prover uma dieta adequada de 2.700 calorias diárias por pessoa. Portanto, se existisse fome ainda seria ela creditada à reconhecida má distribuição da comida. Não obstante, os autores defendem que absoluta ausência não existiria e, mesmo as pessoas mais pobres ganhariam o suficiente para uma dieta necessária, pois as calorias têm-se barateado historicamente, exceto em situações extremas de desastres naturais ou conflitos. Então, disponibilidade e preço não têm sido obstáculos na maior parte dos lugares.

Todavia, insistindo: por que as pessoas estariam comendo menos, se não há problema de acesso à comida? A resposta dada pelos autores é de que as pessoas estão ingerindo menos calorias, talvez porque tenham menos fome. Melhoramentos nos sistemas de tratamento da água e saneamento têm levado a menor perda de nutrientes devido a menos casos de diarreia e outras indisposições de saúde. Outra razão é o declínio de trabalho pesado braçal, que exigiam no passado mais calorias. Se os trabalhadores estão nesse ponto de saciedade, seria normal que passassem a consumir menos comida. Devemos também considerar que os ganhos marginais de produtividade por ingestão de caloria são maiores no início, mas vão diminuindo à medida que se aproxime da saciedade. Tudo levaria a crer que, nos tempos atuais, não há armadilha de pobreza causada estritamente pela fome.

Segundo os autores, não havendo mais fome extrema, em vários lugares do globo as pessoas em situação de pobreza passaram a valorizar outros confortos como os de ter antena parabólica, televisão, aparelhos de DVD, celular, bem como gastos com festividades, tais como casamentos, batismos e até sepultamentos ostentosos, para o nível de renda dessas pessoas. Eles não identificaram irracionalidade nas decisões dessa população, pois muitas vezes, não agem por impulso, mas economizam por muito tempo para aquisição ou custeio desses pequenos luxos. No caso brasileiro, pululam pelos telhados das casas precárias de pau a pique antenas parabólicas, que mostram que esse comportamento também se reproduz no país.

No entanto, todo este entendimento traçado até agora cabe ressalvas. Os autores perguntam se se deve assumir que os pobres comem tanto quanto precisam, apesar de estarem comendo pouco. Em certas situações, a armadilha de pobreza devido à má alimentação ainda procede. Tem sido amplamente comprovado por diversos estudos que a alimentação deficiente das crianças, desde o útero à primeira infância, costuma afetar todo o seu desenvolvimento cognitivo pelo resto da vida. Então, continuam cruciais os programas de nutrição na gestação e na infância.

Logo, concluem os autores que atualmente, em cenários de normalidade, a maior parte da população mundial, mesmo os mais pobres, não vive mais em uma zona de armadilha de pobreza devido à fome, pois conseguem comer, bem ou mal, o suficiente para que sejam produtivos. Pode haver, entretanto, outras armadinhas de pobreza que não a de falta de acesso à alimentação. Um problema parece ser não a quantidade de comida, mas a qualidade dela, quando se avaliam as deficiências nutricionais encontradas agora em larga escala. Finalmente, assentam que a armadilha de pobreza causada pela fome continua fazendo sentido, porém foi ela mais importante no passado e ainda pode ser determinante em situações de calamidade. Citam Amartya Sen, para quem, apesar da falta de comida não deixar ainda de ser um problema mundial, o mundo tornou-se muito abundante para ser a fome o principal deles.

Por fim, parafraseando uma famosa canção brasileira de rock, as pessoas, seja qual for a situação, não querem só comida, mas também diversão, arte, bebida, balé e saída para qualquer parte. A comida é importante, mas não é tudo.

Referência:

Banerjee, Abhijit; Duflo, Esther. Poor Economics: a radical rethinking of the way to fight global poverty. PublicAffairs, 2020.


terça-feira, 29 de setembro de 2020

Um Robin Hood descalibrado

Buscando um substituto para o Auxílio Emergencial, a equipe econômica do governo tem elaborado soluções para um novo programa de transferência de renda que tenha não só valor mais robusto do que o do atual Bolsa Família, como também contemple um número maior de pessoas. A ideia é atender as pessoas oriundas da fila do Bolsa família, já existentes antes da pandemia, e do novo contingente de informais que têm padecido com o mercado de trabalho desaquecido.

Entretanto, as alternativas de fontes de custeio necessárias para a  criação desse programa, tais como o fim do abono salarial, da farmácia popular e do seguro defeso, ou a desvinculação do salário mínimo de aposentadorias e pensões, ou mesmo o congelamento de salários dos servidores públicos, têm desagradado o Presidente da República, que defendeu não poder “tirar dos pobres para dar aos paupérrimos” e até desautorizou os técnicos a seguirem no desenho do novo programa.

Sim! Desvelaram-se os pobres, aqueles que são menos pobres do que os paupérrimos, mas ainda assim passam por privações. Esses pobres podem ser identificados naquela faixa da população que oscila entre a pouca permanência em empregos de carteira assinada, a contumácia em empregos precários e a necessidade crônica de transferências de renda ou qualquer outra ajuda do Estado.

Entender quem são pobres ou paupérrimos envolve conhecer adequadamente a distribuição de renda brasileira. Isso é fundamental para bem posicionar os programas sobre os quais tem sido sugerida a extinção para liberação de recursos ao novo programa de renda.  Restringindo-se à análise técnica, o objetivo seria fortalecer o Bolsa Família, que é reconhecido nacional e internacionalmente como um programa bem focalizado nas camadas mais pobres. Porém, o valor reduzido dos benefícios, enquanto contribui para essa focalização, devido aos valores atraírem principalmente os que necessitam dele, mostra-se insuficiente para um combate mais amplo ao problema da pobreza, sobretudo no cenário pós-pandemia que advirá.

A desigualdade de renda no Brasil é uma das maiores do mundo e gera perversas distorções e ilusões nas políticas públicas. A magnitude dessa desigualdade é tamanha que há de se ter cuidado na interpretação de curvas e indicadores a respeito. Como “o diabo esconde-se nos detalhes”, um leigo pode ser facilmente enganado inclusive por estudos e relatórios dos mais sérios e renomados.

A primeira implicação dessa distorcida distribuição de renda é o fato de que não basta analisar apenas os decis de renda para avaliar se uma determinada política social está bem focalizada nas camadas mais pobres. À título de exemplo, pergunta-se o que se pode concluir da afirmação de que um determinado programa atende os 30% mais ricos da população brasileira? Muitos se precipitariam a achar que esse programa atende apenas os mais ricos da população, sendo esta portanto uma indesejada intervenção estatal.

Da Pnad 2019, pode-se verificar que o sétimo decil de renda per capita familiar, considerando os rendimentos de todas as fontes, é de R$ 1.333,33. Em outras palavras, os 30% mais ricos auferem uma renda per capita familiar mensal igual ou acima de R$ 1.333,33. Portanto, entre os 30%, há famílias que ganham tão pouco quanto R$ 1.333,33 por membro, quanto famílias muito ricas e milionárias com rendimentos per capita dezenas de vezes maior. A distribuição de renda acentuada faz com que faixas de renda acima de certo valor abranjam um grupo muito heterogêneo, levando comumente a erros de leitura de indicadores sociais tal como o apresentado.

E é comum se deparar com estudos que utilizam desse expediente para convencer que algumas políticas são mal focalizadas por atender uma parcela superior de renda da população, mas que na verdade ainda contém beneficiários não ricos, melhor dizendo, pobres mesmo. Encomendado pelo governo brasileiro há alguns anos, o relatório do Banco Mundial “Um Ajuste Justo” é um exemplo dessa lógica de identificar programas regressivos, como o abono salarial, que devem ser substituídos por aqueles mais progressivos, tal qual o salário-família (vide publicação anterior). Coincidentemente, no momento atual a equipe econômica, com o objetivo de injetar recursos no novo programa de renda substituto do Bolsa Família, cogitou suprimir o abono salarial, benefício de no máximo um salário mínimo pago a trabalhadores que tenham recebido até o limite de 2 salários mínimos de remuneração média mensal.

Quanto a isso, lembremos que o limite superior de 2 salários mínimos, condição para a percepção do abono salarial, soma atualmente a R$ 2.090,00, que, considerando o tamanho médio da família média brasileira de 3 pessoas, corresponde a cerca de R$ 700,00 per capita mensal, valor este que faria os indivíduos dessa família estarem, segundo a Pnad anual de 2019, entre os 60% mais ricos do país, ou seja, não muito longe da metade superior da distribuição de renda. Acrescentando-se ainda assim um abono máximo de R$ 1045,00 ao salário, no mês de recebimento do benefício, a renda per capita dessa família modelo subiria para R$ 1.045,00, o que a colocaria entre as 40% mais ricas do país (PNAD). Clara fica a contradição entre a informação sobre classificação de riqueza e a real capacidade de compra, precária, desse grupo de famílias.

Isso ocorre porque, com cerca R$ 700,00 de renda per capita mensal, um brasileiro pode ser considerado entre os 60% mais ricos relativamente à distribuição de renda tão desigual, mas é em termos absolutos, pelo contrário, um cidadão ainda com privações de consumo e, por que não dizer, uma pessoa em situação de pobreza. É salutar saber que o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese) calcula que para 2020 o salário mínimo necessário para sustentar uma família de 4 pessoas deveria ser de R$ 4.366,51 ( Salário minimo segundo o Dieese ), ou seja, cerca de R$ 1.100,00 per capita, valor este bem superior, por exemplo, aos R$ 700,00 per capita do abono salarial, programa cogitado de ser suprimido pelo governo.

Portanto, a divergência surgida entre o Presidente da República e a sua equipe econômica reside no fato de que o primeiro interpretou em termos absolutos a focalização de programas em discussão, enquanto a sua equipe raciocinou em termos relativos. No caso dos técnicos, seria válido retirar recursos para um novo programa de renda para os pobres, inclusive, dos um pouco menos pobres. Essa tem sido a tônica das interpretações econômicas, seja por organismos internacionais financeiros seja por governos alinhados com essa lógica.

Convenientemente, reformas de sistemas de proteção social nessa linha de pensamento econômico dominante podem proporcionar uma queda na desigualdade de renda por alguns indicadores, entre eles, o Coeficiente de Gini. Mas essa prescrição esconde que os referidos indicadores seriam ainda muito melhores, caso os recursos fossem subtraídos de camadas bem mais ricas do que as que tem sido objeto de análise. Uma das funções clássicas governamentais é a de redistribuição de renda dos mais ricos para os mais pobres. Neste papel, o governo brasileiro tem demonstrado ser um Robin Hood portando uma aljava de flechas muito ruins de pontaria.


Em suma, foi necessária uma visão política, minimamente mais sensível que a puramente econômica, para estender as condições de pobreza para uma camada de pessoas que, não obstante dotada de rendimentos, passam por privações de consumo e limitações no seu desenvolvimento humano. Eis que essa discussão acabou por trazer a concepção de que a pobreza deve alcançar uma camada populacional localizada para além das linhas de pobreza consagradas antes da pandemia.

domingo, 16 de agosto de 2020

A desigualdade, segundo o motoboy

Foi execrável o comportamento de um cliente com um motoboy entregador de aplicativo que lhe prestava um serviço na grande São Paulo (https://www.youtube.com/watch?v=Rz8hQbdTN9Y). A gravação se espalhou e ganhou notoriedade em tempos de redes sociais.


Eis o excerto que queremos lançar luz, em que o motoboy retrucou a arrogância do cliente relativa às suas posses:

- O Senhor conseguiu por quê? Por que o seu pai te deu ou por que você trabalhou?

- Eu já nasci rico – respondeu o cliente.

Deixando de lado os execráveis comentários racistas no resto do vídeo, a situação que se procura focar aqui neste texto expõe dois tipos de desigualdade que é despercebida por muitos: a de oportunidade e de resultado.

Havendo igualdade de oportunidade, a todo cidadão seria dada uma estrutura socioeconômica adequada para um suficiente desenvolvimento humano de suas aptidões. A desigualdade de oportunidade é combatida, quando se disponibiliza a todos boa educação formal, acesso fácil à saúde, garantia de uma segurança alimentar e nutricional, participação no mercado de trabalho e geração de renda, acesso barato à cultura, entre outros.

Mesmo que um sistema proporcione uma ótima igualdade de oportunidade, as pessoas alcançarão resultados diversos, haja vista que cada um possui liberdade de escolha do nível de esforço a ser empregado em sua trajetória de vida. Assim, há por exemplo os que preferem mais o trabalho e o estudo ao lazer, aumentando a probabilidade de alcançarem maiores resultados, se o sucesso for mensurado pela renda e pelo patrimônio. Acontece com frequência de irmãos, que possuem as mesmas condições de desenvolvimento, tenham resultados díspares nas suas carreiras profissionais e vidas pessoais. Assim, ocorre uma natural desigualdade de resultado em função da diversidade de escolhas entre as pessoas.

Portanto, dada essa separação conceitual de desigualdades, é bem mais defensável, mesmo no espectro conservador político, a luta contra a desigualdade de oportunidade, não importando, porém, a desigualdade de resultado. Afinal de contas, até o mundo selvagem rousseauniano, tido pelo grande pensador como uma sociedade inerentemente igualitária, tenderia ainda assim a uma diferenciação por diferenças inatas, como saúde, força, habilidade mental. Mas ele mesmo complementaria  que as instituições humanas existentes tratariam de piorar esse quadro de desigualdade. Parece consensual, senão para os mais radicais dos conservadores, que as regras do jogo devem ser iguais para todos e que cada um aproveite como desejar as suas chances. Isso remete a adoção de instituições, tais como educação e saúde, que resolvam a disparidade de oportunidade no seio da sociedade, não consistindo em preocupação o resultado final das escolhas das pessoas.

Mas as coisas não são tão simples como parecem e o diálogo do motoboy escancara essa situação. As desigualdades de oportunidade e de resultado não são dois fenômenos incomunicáveis. É fácil de ver que o primeiro tipo de desigualdade leva ao segundo. Mas o inverso também acontece e isso o motoboy, na sua sabedoria rotineira, expôs aos que assistiram ao vídeo.

A desigualdade de resultado pode levar e leva comumente a uma desigualdade de oportunidade na transmissão das riquezas de uma geração para a outra. Filhos de pais ricos e pobres têm a tendência de permanecerem na mesma situação socioeconômica dos pais. As parcelas de faixas de renda mais altas nas sociedades concentram as rendas de patrimônio, como aluguéis, aplicações financeiras, muitas delas resultantes de heranças recebidas de familiares e a serem repassadas a seus descendentes. No Brasil, segundo a Pnad de 2019, concentram-se, na faixa de renda per capita domiciliar maior do que 5 salários mínimos, 53,2% dos rendimentos de aluguéis e 72,2% dos rendimentos de aplicações financeiras.

A repercussão geracional da desigualdade não se faz apenas diretamente por meio de testamentos vultosos, mas também pelas diferenças de ambientes familiares para o desenvolvimento das crianças em idade educacional. Ainda que a sociedade possa proporcionar escolas de qualidade em condições isonômicas entre as famílias de várias classes sociais, a criança, ao voltar para o lar, encontra condições diferentes de apoio, acolhimento e estímulo para o desenvolvimento cognitivo de suas aptidões. Não obstante haver vários estudos apontando essa influência do ambiente familiar, não é difícil perceber que pais analfabetos quase sempre não estimulam a leitura de seus filhos, como o fazem os pais mais  escolarizados. É mais uma vez a desigualdade de resultado implicando desigualdade de oportunidade.

Um aspecto final que dificulta essa abordagem dual de desigualdades é que a igualdade econômica, mesmo a de oportunidade, enquanto facilmente imaginada, é extremamente difícil de ser obtida. Segundo Okun (1975), “é praticamente impossível de reconhecer uma igualdade completa se ela existir; mas a desigualdade é muito fácil de reconhecer”. Assinala várias situações que representam obstáculos para a elaboração de uma linha de largada igualitária em uma corrida, metáfora comumente usada para os que raciocinam e defendem uma igualdade de oportunidade. Segundo o economista, “o sucesso que depende de quem você conhece em vez de o que você conhece é um claro caso de desigualdade de oportunidade. E isso parece particularmente injusto quando a questão real é quem seu pai conhece”. Pergunta-se: como elaborar uma linha de partida diante dessas circunstâncias fáticas?

A discussão acima serve para derrubar as argumentações por aí repetidas de defesa ao fim da desigualdade de oportunidade, mas de rechaço integral a de resultado. Portanto, são incoerentes esses pontos de vista, caso não se considere algum apoio em relação a algumas medidas contra desigualdade de resultado, tal como a maior taxação de heranças.

Em suma, em sua simples e rápida resposta, sem saber que havia embasamento acadêmico, o motoboy foi cirurgicamente certeiro no seu comentário.

Referência:

Okun, A. M. (1975) Equality and Efficiency. In Atkinson, A. B. (Org.) Wealth, Income & Inequality. Second Edition, Oxford University Press, 1980.

IBGE. Pesquisa Nacional de Amostras por Domicílio (PNAD) 2019. Disponível em: www.ibge.gov.br . Acesso em: 16/8/2020.



sexta-feira, 31 de maio de 2019

A História da Pobreza - Debates e Retrocessos recentes nos EUA – por Ravallion (12)


Os avanços alcançados pelos programas gerados pela Guerra à Pobreza americana começam a sofrer fortes golpes a partir do fim dos anos 70. O ponto de virada foi a eleição de Ronald Reagan em 1980, que passou a defender restrições às elegibilidades para os programas, esforços administrativos para cancelar benefícios daqueles elegíveis e redução orçamentária dos programas antipobreza.

Retornaram as críticas de que o estado de bem-estar social era que gerava pobreza, trazendo à lembrança o pensamento do fim do século XVIII, como de Joseph Townsend. Entretanto, diferentemente daqueles tempos de debates sobre a Lei da Pobreza inglesa, nenhuma evidência contra os programas sociais era apresentada, enquanto que havia evidências apontando o contrário.

A recorrente preocupação acerca do desincentivo ao trabalho provocado por esses programas, como o Auxílio a Famílias com Filhos Dependentes (Aid to Families with Dependent Children - AFDC), criado em 1935, que atendia famílias de crianças e adolescentes, passou paradoxalmente, no entanto, a ser encarada como algo desejado. Afinal de contas, as crianças não precisavam trabalhar, pois tinham que estudar, o que poderia ajudar na quebra intergeracional de pobreza, enquanto que as mães poderiam acompanhar o desenvolvimento da primeira infância, caso não necessitassem estar no mercado de trabalho.

Entretanto, nem todos os beneficiários contavam com essa interpretação benevolente acima. Havia acusações de que o estado social produzia pobreza e de que a pobreza seria menor sem transferência de benefícios para esses grupos, pois assim as pessoas se poriam a trabalhar para gerar a sua renda. À exceção do Crédito Fiscal por Remuneração Recebida (Earned Income Tax Credit - EITC), que continha uma taxa marginal de impostos muito abaixo de 100% - ou seja, matinha incentivos para os beneficiários buscarem renda extra pelo trabalho –, os demais desenhos de programas americanos apresentavam altas taxas marginais de impostos, o que dava margem à crítica recorrente de “efeito preguiça” causado por esses programas.

Apesar dos cortes orçamentários e as permanentes críticas de desincentivo ao trabalho, os programas elaborados pela Guerra à Pobreza americana tiveram longa vida, até a grande mudança promovida pelo presidente Bill Clinton em agosto de 1996 com a Lei de Responsabilidade Pessoal e Reconciliação da Oportunidade de Trabalho (Personal Responsibility and Work Opportunity Reconciliation Act). O AFDC foi substituído pelo Assistência Temporária às Famílias Necessitadas (Temporary Assistence for Needy families -TANF), o qual limitava assistência a 5 anos durante o tempo de vida e obrigava os beneficiários a trabalhar em 2 anos.

De novo, como fora o debate da nova Lei dos Pobres em 1830, a exigência de trabalho para os beneficiários de programas assistenciais retornava à tona. Não obstante fosse menos draconiana que as Casas de Trabalho, o raciocínio permanecia o mesmo: incentivar o comportamento dos pobres para o trabalho. Eufemisticamente, defendiam-se os ganhos com experiência de trabalho, as virtudes morais do trabalho e os benefícios para a comunidade local. Todavia, o desejo subliminar era de expulsar as pessoas do estado de bem-estar social.

segunda-feira, 8 de abril de 2019

A História da Pobreza - Os EUA descobrem a pobreza – por Ravallion (11)


O crescimento americano no pós-guerra na esteira do New Deal e a consequente melhora das condições de vida dos seus cidadãos também geraram pobreza, fato que provocou surpresa para o americano médio.

A partir dos anos 40, os EUA passaram por drástica mudança estrutural. A demanda da indústria da defesa, que atraiu os trabalhadores do campo sobretudo do sul do país, e a maior demanda por comida levaram à modernização da agricultura e ao deslocamento de um grande contingente de trabalhadores rurais para as grandes cidades. Acontece que muitos não encontraram emprego caindo na pobreza, principalmente os afrodescendentes. Geograficamente, a pobreza, que era rural e dispersa pelos estados sulistas, passou a se concentrar nas grandes cidades ao norte. Localmente, as famílias ricas mudaram-se para subúrbios com os incentivos hipotecários, enquanto que as pobres permaneceram nas áreas centrais das cidades, deficitárias de serviços públicos.

Em um contexto de franco crescimento econômico, os americanos se surpreenderam com estudos apontando a existência de pobreza em seu próprio território. Dois estudos se destacaram: a Sociedade Afluente do economista John Kenneth Galbraith (1958) e A Outra América do cientista político Michael Harrington (1962). Esse movimento foi marcado pelo desenvolvimento de novas teorias e de dados obtidos das pesquisas estatísticas e análises que desvendavam condições de vida e estabeleciam medições de pobreza. A sociedade americana se chocou, quando foi revelado que quase 1 em cada 5 americanos era pobre. Não que as pesquisas fossem inovações da época, pois já existiam pesquisas e estudos quantitativos 70 anos antes com Charles Booth e Benjamin Rowntree. Ocorre que agora comentários qualitativos na mídia e livros populares passaram a influenciar mais fortemetente a opinião pública.

Galbraith e Harrington descreveram a pobreza minoritária nos EUA, resultado da redução da pobreza perante o vigoroso crescimento econômico, não obstante a sua permanência em um tamanho considerável. O fato de muitos pobres anteriores migrarem para a classe média, mas muitos outros pobres ficarem para trás, colocou em xeque as acreditadas mobilidade social e igualdade de oportunidades na América. Galbraith identificava duas razões para que as pessoas pobres não conseguissem aproveitar as oportunidades. A primeira ele atribuía a alguma deficiência física ou mental de algumas pessoas, enquanto a segunda apontava a existência de bolsões de pobreza. Harrington acrescentava a essa razões o fato de que as transformações econômicas profundas geravam não só ganhadores como perdedores.

Essa expansão da consciência pública quanto à pobreza, os grandes protestos ocorridos nos anos 60 e os inúmeros debates políticos provocaram uma resposta política do governo federal. Oriundo do New Deal na década de 30, o programa Aid to Families with Dependent Children (AFDC), programa de transferência para mães pobres solteiras, teve a sua elegibilidade ampliada. A Guerra contra a Pobreza da administração do presidente Lyndon Johnson consistiu de um conjunto famoso de programas introduzidos em 1964-65, em nutrição (Food Stamps), saúde (Medicare e Medicaid), educação (Head Start, Elementary and Secondary Education Act de 1965), habitação, capacitação, entre outros.

Conversa entre o Presidente Lyndon Johnson e Martin Luther King

Essas intervenções governamentais tinham objetivos de promoção da redução da pobreza. Mas tinham também um objetivo de alcançar os afrodescendentes nos guetos das cidades do norte e diminuir a desordem social espalhada nos centros urbanos na década de 60. Essas políticas visavam incorporá-los ao desenvolvimento urbano ao buscar melhorar o seu acesso aos serviços públicos. Digno de nota é que a pobreza rural recebeu muito menos atenção.

Ainda em relação à caracterização dessas novas políticas sociais, um novo sistema de entrega governamental emergiu. Criou-se um consenso de que para dar mais efetividade à intervenção governamental, os programas deveriam ignorar os níveis estaduais e locais, atendendo diretamente os cidadãos na ponta. Esse novo arranjo administrativo refletia o entendimento de que governos estaduais e locais, especialmente os do sul, impunham obstáculos para políticas de combate à pobreza e às novas leis de direitos civis. Essas novas políticas anti-pobreza baseadas nas comunidades tornaram-se predominantes inclusive a partir dos anos 90 nos países em desenvolvimento.

Avaliando as razões para essas transformações sociais e institucionais – de políticas anti-pobreza ao advento de direitos civis – , vemos que a comunidade negra tornaram-se mais organizadas politicamente nos guetos, bem como as revoltas nesses ambientes também levavam os ricos a apoiarem mudanças em prol dos mais pobres. Mas essas mudanças não foram baseadas apenas em razões políticas. Era uma resposta de políticas públicas baseadas em evidências, ideias e debates que permearam o período. Desde o início, esse movimento rejeitou as concepções utilitaristas e fundou as suas elaborações em direitos e oportunidades. A principal peça legislativa no período foi o Economic Opportunity Act e acriação de órgão para fiscalizar os gastos federais em novas políticas que deveriam cobrar das instâncias estadual e local que se opunham ao povo mais pobre, gerando corrupção e discriminação racial e julgando os mais desvalidos não merecedores dos novos benefícios sociais. Havia também uma diretriz de apoiar organizações não governamentais que trabalhavam com conscientização de direitos das comunidades mais pobres.

A mais importante inovação foi a busca de se medir a efetividade das políticas públicas de combate à pobreza. Um esforço administrativo passou a ser feito nos estágios iniciais de implementação de novas políticas por meio de experimentos randomizados de testes piloto de programas sociais. O conhecimento gerado serviu para dar suporte à Guerra contra a Pobreza e destacou-se nessa ação a criação do Instituto de Pesquisa sobre Pobreza, criado em 1966 na Universidade de Wisconsin-Madinson, que utilizava avaliações baseadas em métodos experimentais e não experimentais, o que passou a ser copiado em outras partes do mundo.

A maioria dos intelectuais e estudiosos da Guerra contra a Pobreza nos EUA não eram economistas, apesar de estes terem sido envolvidos nas discussões a respeito do tema. Alguns dos economistas importantes que contribuiram para o tema ainda carregavam nas suas análises a escola welfarista e utilitarista, o que era muito mais confortável para eles do que ficar tratando de direitos. Participavam com o intuito de tentar fechar as lacunas negativas da teoria do desenvolvimento welfarista. Uma preocupação recorrente era o desincentivo ao trabalho que poderia provocar programas sociais focalizados nos mais pobres, devido a taxa interna de imposto marginal de 100% dos beneficiários. Um expoente na época foi Milton Freedman, que fez uma proposta radical de substituir todos esses programas pelo Imposto de Renda Negativo.

quarta-feira, 13 de março de 2019

A História da Pobreza - o princípio de justiça de John Rawls - por Ravallion (10)


Um trabalho marcante na área social foi a do filósofo e professor de Harvard, John Rawls. A sua obra, Uma Teoria de Justica de 1971, foi uma formulação rigorosa e uma reação humanista ao utilitarismo, escola predominante entre os economistas.


Partindo de um contrato social a ser acordado sob um “véu de ignorância”, em que hipoteticamente as pessoas não saberiam sobre elas mesmo de modo a não escolher um arranjo social que lhe beneficiassem, Rawls propôs dois princípios de justiça que deveriam ser adotados na posição inicial em uma sociedade:

1) Princípio de Liberdade: cada pessoa deve ter igual direito ao mais amplo conjunto de liberdades compatível com o sistema de liberdades do qual as demais usufruem;
2) Princípio da Diferença: atendido o princípio de liberdade anterior, as desigualdades sociais e econômicas são aceitáveis somente quando propiciem o máximo de benefício esperado para os menos favorecidos e estejam garantidos cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades.

Após enunciar um sistema de liberdades fundamentais para todas as pessoas, Rawls inovou com o princípio da Diferença, que afastava o equalitarismo radical, no qual se defende que a igualdade sempre melhora a eficiência. Ao contrário, segundo o filósofo, uma sociedade A desigual pode ser preferível do ponto de vista moral a uma outra sociedade B sem nenhuma desigualdade, desde que os mais pobres estejam melhor na sociedade A. O princípio da Diferença deu origem a prescrição de que as vantagens dos grupos mais desvalidos deveriam ser maximizadas, o que veio a ser conhecida por maxmin.

Muitos interpretam que a ideia maxmin de Rawls implica que as preocupações com desigualdade na sociedade devem ser eliminadas, uma vez que cada um de seus membros passe a estar acima de padrões mínimos de condições de vida. Isso promoveu certamente a adoção de medidas de pobreza absoluta como meio de monitorar o progresso social. Para Ravallion, essa visão única de priorização pela pobreza seria questionável na interpretação do trabalho de Rawls.

Para fugir da formulação utilitarista, Rawls evitou usar o conceito de função utilidade, usando para ordenar a situação socioeconômica das pessoas na sociedade o conceito de expectativa de bem-estar baseado em bens primários, como direitos, poderes, oportunidades, renda, riqueza, etc; todas coisas necessárias para assegurar que se é livre para se viver a vida que se quer. Ou seja, Rawls, para caracterizar os mais desvalidos na sociedade, focava nas liberdades e recursos mínimos necessários para inclusão social.

Rawls foi influenciado por filósofos e economistas, mas sobretudo sua contribuição pertence à escola da Teoria do Contrato Social, consagrada por Thomas Hobbes. No principio da Diferença de Rawls, há inspirações na Revolução Francesa, cujo lema abrangia a fraternidade, no qual se deveria rejeitar grandes vantagens aos ricos a menos que beneficiasse a outros menos favorecidos. Rawls via a sua teoria como uma nova releitura de Immanuel Kant, que advogava que qualquer homem pobre deveria ter o direito de veto sobre proposições que trouxesse ganhos aos mais ricos às suas custas. Adam Smith também entendia que a pobreza de alguns seria inaceitável como meio de prosperidade para os outros.

A teoria de justiça de Raws foi um contraponto nítido ao utilitarismo clássico dos economistas, teoria vista em conflito com a fraternidade. Pelo utilitarismo (vide post sobre o Utilitarismo), poderia haver ganhos para os mais ricos que justificassem perdas para os mais pobres, refletindo a formulação da teoria que preconizava a maximização da soma das utilidades de todos os membros da sociedade. Com a sua prescrição de maximizar as expectativas de bem-estar dos grupos mais desvalidos, Rawls confrontou a visão dominante nas políticas públicas geradas à época.

Mais emblemático ainda foi a consolidação definitiva – ao menos, fora da cabeça dos ultraconservadores –  do pensamento de que a pobreza não se devia unicamente ao “mau comportamento” de uma parcela da população. A pobreza podia refletir sim falta de esforço das pessoas, mas tinha um componente circunstancial muito forte do ambiente precário de privação. Políticas públicas de combate à pobreza passaram a considerar essa distinção conceitual, promovendo novas formulações por parte de filósofos e economistas em nome da, hoje defendida amplamente, igualdade de oportunidades.

Bibliografia:

Ravallion, M. The Economics of Poverty. Oxford University Press, 2016.
Rawls, J. Uma Teoria de Justiça. 3ª ed. traduzida – São Paulo: Martins Fontes, 2008.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

O pobre na atual reforma da previdência


A proposta da reforma acabou de ser apresentada pelo governo e promete, no melhor das hipóteses, uma profusão de debates e discussões sobre os impactos socioeconômicos.

No entanto, ao mesmo tempo que a proposição governamental é abundante em análises fiscais e econômicas, ela deixa a desejar nos exames de suas consequências sociais. Apesar do aceno às camadas sociais mais baixas, com a diminuição de alíquotas previdenciárias e o minoramento de alguns impactos, há realmente muitos outros parâmetros da reforma que podem prejudicar o acesso desses grupos aos benefícios.

Apesar do brado retumbante do governo de que a reforma atinge apenas privilégios e de que os mais pobres serão os menos atingidos, salta aos olhos a ausência de uma análise ampla do impacto da reforma sobre a pobreza brasileira, tema deste blog. É importante que todas as informações estejam à mesa para que uma discussão sobre essa alteração no sistema de proteção social do país seja mais completa. Se a proposta do governo se restringir a cálculos atuariais, poderá solucionar o problema fiscal, mas criando problemas muitos maiores na sociedade.

Sem muito esforço, podemos iniciar por uma análise do principal benefício assistencial, o Benefício de Prestação Continuada (BPC), que sofrerá alterações significativas, se aprovada a proposta. Conhecido como “aposentadoria social”, denominação esta desvirtuada pois aposentadorias exigem contribuições previdenciárias – o que não é o caso -, o BPC paga 1 salário mínimo e contempla pessoas com deficiência ou idosos de 65 anos ou mais que vivam em famílias de renda per capita familiar inferior ao 1/4 de salário mínimo.

Centrando atenção no segundo grupo de beneficiários, os idosos de 65 anos – até porque para as pessoas com deficiência não houve proposta de alteração –, podemos perceber claramente qual foi a rationale do governo explicitada pelas falas dos seus técnicos. A intenção é a de incentivar benefício previdenciário ao invés do assistencial, ao adotar, o que chamaram, de BPC fásico.

Vejamos! O governo propõe que o BPC seja pago mais cedo aos 60 anos, mas a um valor de R$ 400,00, que permaneceria até os 70 anos, ao ser majorado para R$ 1.000,00. Para simplificar a análise consideremos, R$ 1.000,00 o valor do salário mínimo (valor do salário em 2019 é de R$ 998,00). Comparando a sistema de proteção atual ao proposto pela reforma, temos o gráfico abaixo.


Percebe-se que claramente as razões pelas quais foi fixado o valor de R$ 400,00 para o benefício entre os 60 e 70 anos de idade. A primeira aponta para uma economia para cofres do governo com o pagamento do benefício, uma vez que o que se pagaria a mais com a reforma (área azul) é menor do que o que se pagaria a menos com sistema atual (área verde). Segundo, se esse valor não fosse inferior a R$ 500,00, a soma dos valores de BPC repassados no referido período seria igual ou maior do que à da atual sistemática de pagar R$ 1.000,00 só a partir dos 65 anos e haveria, ao contrário do que se pretende, maior incentivo para população esperar o BPC e, assim, não optando por uma aposentadoria contributiva. Por isso, o valor proposto, tendo em vista essa premissa, precisava ser fixado abaixo de R$500,00 e o foi.

A primeira crítica é que, chegando aos 60 anos, época em que a capacidade laborativa se reduz consideravelmente sobretudo entre os mais pobres, é muito pouco provável que haja interesse, ou mesmo possibilidade, deste grupo acrescentar tempo de contribuição, ao menos no curto prazo. No longo prazo, os mais novos podem em tese ainda alterar as suas preferências. Mas, ainda assim, as conhecidas limitações cognitivas das pessoas que passam por privação, que possuem altas taxas de desconto intertemporais, podem sabotar tomada de decisão na direção das contribuições, ainda mais com as dificuldades de colocação no mercado de trabalho. Portanto, considerando isso, quanto ao aspecto fiscal da reforma, o governo realmente poderia economizar com o benefício de BPC pago a menor, sobretudo no curto prazo, mas provalvemente não captaria novas contribuições por conta desse mecanismo, mesmo no longo prazo. Quanto ao aspecto social, o impacto sobre a pobreza é claramente negativo.

Mas, não podemos esquecer que, no âmbito assistencial, há o bolsa família que beneficia uma boa parte desse público do BPC. Haverá a possibilidade desse público de 60 a 65 anos do bolsa família, que recebe transferências de valores médios bem mais baixos que os R$ 400,00 do BPC, passar a receber este último. Esse, ao contrário, teria um efeito positivo sobre a pobreza do país.

Na falta de análises por parte do governo, o impacto líquido do novo BPC sobre a pobreza é desconhecido. Cabe a outros setores do governo, do Estado e da sociedade buscar calcular se esse mecanismo específico do BPC fásico, assim como dos outros itens da proposta de reforma, serão prejudiciais aos pobres, ou mesmo, benéficos. Não bastam slogans como “quem ganha menos (mais) paga menos (mais)”. Essas afirmações são ainda desconectadas das repercussões que a reforma terá sobre os mais pobres.