domingo, 16 de agosto de 2020

A desigualdade, segundo o motoboy

Foi execrável o comportamento de um cliente com um motoboy entregador de aplicativo que lhe prestava um serviço na grande São Paulo (https://www.youtube.com/watch?v=Rz8hQbdTN9Y). A gravação se espalhou e ganhou notoriedade em tempos de redes sociais.


Eis o excerto que queremos lançar luz, em que o motoboy retrucou a arrogância do cliente relativa às suas posses:

- O Senhor conseguiu por quê? Por que o seu pai te deu ou por que você trabalhou?

- Eu já nasci rico – respondeu o cliente.

Deixando de lado os execráveis comentários racistas no resto do vídeo, a situação que se procura focar aqui neste texto expõe dois tipos de desigualdade que é despercebida por muitos: a de oportunidade e de resultado.

Havendo igualdade de oportunidade, a todo cidadão seria dada uma estrutura socioeconômica adequada para um suficiente desenvolvimento humano de suas aptidões. A desigualdade de oportunidade é combatida, quando se disponibiliza a todos boa educação formal, acesso fácil à saúde, garantia de uma segurança alimentar e nutricional, participação no mercado de trabalho e geração de renda, acesso barato à cultura, entre outros.

Mesmo que um sistema proporcione uma ótima igualdade de oportunidade, as pessoas alcançarão resultados diversos, haja vista que cada um possui liberdade de escolha do nível de esforço a ser empregado em sua trajetória de vida. Assim, há por exemplo os que preferem mais o trabalho e o estudo ao lazer, aumentando a probabilidade de alcançarem maiores resultados, se o sucesso for mensurado pela renda e pelo patrimônio. Acontece com frequência de irmãos, que possuem as mesmas condições de desenvolvimento, tenham resultados díspares nas suas carreiras profissionais e vidas pessoais. Assim, ocorre uma natural desigualdade de resultado em função da diversidade de escolhas entre as pessoas.

Portanto, dada essa separação conceitual de desigualdades, é bem mais defensável, mesmo no espectro conservador político, a luta contra a desigualdade de oportunidade, não importando, porém, a desigualdade de resultado. Afinal de contas, até o mundo selvagem rousseauniano, tido pelo grande pensador como uma sociedade inerentemente igualitária, tenderia ainda assim a uma diferenciação por diferenças inatas, como saúde, força, habilidade mental. Mas ele mesmo complementaria  que as instituições humanas existentes tratariam de piorar esse quadro de desigualdade. Parece consensual, senão para os mais radicais dos conservadores, que as regras do jogo devem ser iguais para todos e que cada um aproveite como desejar as suas chances. Isso remete a adoção de instituições, tais como educação e saúde, que resolvam a disparidade de oportunidade no seio da sociedade, não consistindo em preocupação o resultado final das escolhas das pessoas.

Mas as coisas não são tão simples como parecem e o diálogo do motoboy escancara essa situação. As desigualdades de oportunidade e de resultado não são dois fenômenos incomunicáveis. É fácil de ver que o primeiro tipo de desigualdade leva ao segundo. Mas o inverso também acontece e isso o motoboy, na sua sabedoria rotineira, expôs aos que assistiram ao vídeo.

A desigualdade de resultado pode levar e leva comumente a uma desigualdade de oportunidade na transmissão das riquezas de uma geração para a outra. Filhos de pais ricos e pobres têm a tendência de permanecerem na mesma situação socioeconômica dos pais. As parcelas de faixas de renda mais altas nas sociedades concentram as rendas de patrimônio, como aluguéis, aplicações financeiras, muitas delas resultantes de heranças recebidas de familiares e a serem repassadas a seus descendentes. No Brasil, segundo a Pnad de 2019, concentram-se, na faixa de renda per capita domiciliar maior do que 5 salários mínimos, 53,2% dos rendimentos de aluguéis e 72,2% dos rendimentos de aplicações financeiras.

A repercussão geracional da desigualdade não se faz apenas diretamente por meio de testamentos vultosos, mas também pelas diferenças de ambientes familiares para o desenvolvimento das crianças em idade educacional. Ainda que a sociedade possa proporcionar escolas de qualidade em condições isonômicas entre as famílias de várias classes sociais, a criança, ao voltar para o lar, encontra condições diferentes de apoio, acolhimento e estímulo para o desenvolvimento cognitivo de suas aptidões. Não obstante haver vários estudos apontando essa influência do ambiente familiar, não é difícil perceber que pais analfabetos quase sempre não estimulam a leitura de seus filhos, como o fazem os pais mais  escolarizados. É mais uma vez a desigualdade de resultado implicando desigualdade de oportunidade.

Um aspecto final que dificulta essa abordagem dual de desigualdades é que a igualdade econômica, mesmo a de oportunidade, enquanto facilmente imaginada, é extremamente difícil de ser obtida. Segundo Okun (1975), “é praticamente impossível de reconhecer uma igualdade completa se ela existir; mas a desigualdade é muito fácil de reconhecer”. Assinala várias situações que representam obstáculos para a elaboração de uma linha de largada igualitária em uma corrida, metáfora comumente usada para os que raciocinam e defendem uma igualdade de oportunidade. Segundo o economista, “o sucesso que depende de quem você conhece em vez de o que você conhece é um claro caso de desigualdade de oportunidade. E isso parece particularmente injusto quando a questão real é quem seu pai conhece”. Pergunta-se: como elaborar uma linha de partida diante dessas circunstâncias fáticas?

A discussão acima serve para derrubar as argumentações por aí repetidas de defesa ao fim da desigualdade de oportunidade, mas de rechaço integral a de resultado. Portanto, são incoerentes esses pontos de vista, caso não se considere algum apoio em relação a algumas medidas contra desigualdade de resultado, tal como a maior taxação de heranças.

Em suma, em sua simples e rápida resposta, sem saber que havia embasamento acadêmico, o motoboy foi cirurgicamente certeiro no seu comentário.

Referência:

Okun, A. M. (1975) Equality and Efficiency. In Atkinson, A. B. (Org.) Wealth, Income & Inequality. Second Edition, Oxford University Press, 1980.

IBGE. Pesquisa Nacional de Amostras por Domicílio (PNAD) 2019. Disponível em: www.ibge.gov.br . Acesso em: 16/8/2020.



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