Foi execrável o comportamento de
um cliente com um motoboy entregador de aplicativo que lhe prestava um
serviço na grande São Paulo (https://www.youtube.com/watch?v=Rz8hQbdTN9Y).
A gravação se espalhou e ganhou notoriedade em tempos de redes sociais.
Eis o excerto que queremos lançar
luz, em que o motoboy retrucou a arrogância do cliente relativa às suas posses:
- O Senhor conseguiu por quê? Por
que o seu pai te deu ou por que você trabalhou?
- Eu já nasci rico – respondeu o
cliente.
Deixando de lado os execráveis
comentários racistas no resto do vídeo, a situação que se procura focar aqui
neste texto expõe dois tipos de desigualdade que é despercebida por muitos: a
de oportunidade e de resultado.
Havendo igualdade de oportunidade,
a todo cidadão seria dada uma estrutura socioeconômica adequada para um suficiente
desenvolvimento humano de suas aptidões. A desigualdade de oportunidade é
combatida, quando se disponibiliza a todos boa educação formal, acesso fácil à
saúde, garantia de uma segurança alimentar e nutricional, participação no
mercado de trabalho e geração de renda, acesso barato à cultura, entre outros.
Mesmo que um sistema proporcione
uma ótima igualdade de oportunidade, as pessoas alcançarão resultados diversos,
haja vista que cada um possui liberdade de escolha do nível de esforço a ser
empregado em sua trajetória de vida. Assim, há por exemplo os que preferem mais
o trabalho e o estudo ao lazer, aumentando a probabilidade de alcançarem
maiores resultados, se o sucesso for mensurado pela renda e pelo patrimônio. Acontece
com frequência de irmãos, que possuem as mesmas condições de desenvolvimento,
tenham resultados díspares nas suas carreiras profissionais e vidas pessoais.
Assim, ocorre uma natural desigualdade de resultado em função da
diversidade de escolhas entre as pessoas.
Portanto, dada essa separação
conceitual de desigualdades, é bem mais defensável, mesmo no espectro
conservador político, a luta contra a desigualdade de oportunidade, não
importando, porém, a desigualdade de resultado. Afinal de contas, até o mundo
selvagem rousseauniano, tido pelo grande pensador como uma sociedade
inerentemente igualitária, tenderia ainda assim a uma diferenciação por
diferenças inatas, como saúde, força, habilidade mental. Mas ele mesmo
complementaria que as instituições
humanas existentes tratariam de piorar esse quadro de desigualdade. Parece
consensual, senão para os mais radicais dos conservadores, que as regras do
jogo devem ser iguais para todos e que cada um aproveite como desejar as suas
chances. Isso remete a adoção de instituições, tais como educação e saúde, que
resolvam a disparidade de oportunidade no seio da sociedade, não consistindo em
preocupação o resultado final das escolhas das pessoas.
Mas as coisas não são tão simples
como parecem e o diálogo do motoboy escancara essa situação. As
desigualdades de oportunidade e de resultado não são dois fenômenos incomunicáveis.
É fácil de ver que o primeiro tipo de desigualdade leva ao segundo. Mas o
inverso também acontece e isso o motoboy, na sua sabedoria rotineira, expôs aos
que assistiram ao vídeo.
A desigualdade de resultado pode
levar e leva comumente a uma desigualdade de oportunidade na transmissão das
riquezas de uma geração para a outra. Filhos de pais ricos e pobres têm a
tendência de permanecerem na mesma situação socioeconômica dos pais. As
parcelas de faixas de renda mais altas nas sociedades concentram as rendas de
patrimônio, como aluguéis, aplicações financeiras, muitas delas resultantes de
heranças recebidas de familiares e a serem repassadas a seus descendentes. No
Brasil, segundo a Pnad de 2019, concentram-se, na faixa de renda per capita domiciliar maior do que 5
salários mínimos, 53,2% dos rendimentos de aluguéis e 72,2% dos rendimentos de
aplicações financeiras.
A repercussão geracional da
desigualdade não se faz apenas diretamente por meio de testamentos vultosos,
mas também pelas diferenças de ambientes familiares para o desenvolvimento das
crianças em idade educacional. Ainda que a sociedade possa proporcionar escolas
de qualidade em condições isonômicas entre as famílias de várias classes
sociais, a criança, ao voltar para o lar, encontra condições diferentes de
apoio, acolhimento e estímulo para o desenvolvimento cognitivo de suas
aptidões. Não obstante haver vários estudos apontando essa influência do
ambiente familiar, não é difícil perceber que pais analfabetos quase sempre não
estimulam a leitura de seus filhos, como o fazem os pais mais escolarizados. É mais uma vez a desigualdade
de resultado implicando desigualdade de oportunidade.
Um aspecto final que dificulta
essa abordagem dual de desigualdades é que a igualdade econômica, mesmo a de
oportunidade, enquanto facilmente imaginada, é extremamente difícil de ser
obtida. Segundo Okun (1975), “é praticamente impossível de reconhecer uma
igualdade completa se ela existir; mas a desigualdade é muito fácil de
reconhecer”. Assinala várias situações que representam obstáculos para a elaboração
de uma linha de largada igualitária em uma corrida, metáfora comumente usada
para os que raciocinam e defendem uma igualdade de oportunidade. Segundo o
economista, “o sucesso que depende de quem você conhece em vez de o que você
conhece é um claro caso de desigualdade de oportunidade. E isso parece
particularmente injusto quando a questão real é quem seu pai conhece”.
Pergunta-se: como elaborar uma linha de partida diante dessas circunstâncias
fáticas?
A discussão acima serve para
derrubar as argumentações por aí repetidas de defesa ao fim da desigualdade de
oportunidade, mas de rechaço integral a de resultado. Portanto, são incoerentes
esses pontos de vista, caso não se considere algum apoio em relação a algumas
medidas contra desigualdade de resultado, tal como a maior taxação de heranças.
Em suma, em sua simples e rápida resposta,
sem saber que havia embasamento acadêmico, o motoboy foi cirurgicamente certeiro
no seu comentário.
Referência:
Okun, A. M. (1975) Equality and Efficiency. In
Atkinson, A. B. (Org.) Wealth, Income & Inequality. Second Edition, Oxford
University Press, 1980.
IBGE. Pesquisa Nacional de
Amostras por Domicílio (PNAD) 2019. Disponível em: www.ibge.gov.br . Acesso em: 16/8/2020.
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