Em se tratando de pobreza, não há fator mais provável de saltar aos olhos do que o da privação de alimentos. Comumente a fome é vista como causa e consequência da pobreza, ou seja, como sinônimas. Não à toa linhas de pobreza muitas vezes são definidas com base em orçamentos mínimos para aquisição de uma cesta de alimentos de subsistência. Outrossim, este entrelaçamento entre pobreza e fome é uma visão compartilhada pelas Nações Unidas, que nos seus Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (número 2) incluiu metas de redução conjunta de pobreza e de fome. Segundo esse organismo internacional, no último ano, a fome atingia ainda 820 milhões de pessoas no planeta (ONU News).
Recentemente,
o Programa Mundial de Alimentos, agência das Nações Unidas para combate à fome,
ganhou o Nobel da Paz de 2020, por “seus esforços de combate à fome, por sua
contribuição para melhorar as condições para a paz em áreas atingidas por
conflitos e por agir como força-motriz dos esforços para prevenir a fome como
uso de arma de guerra e conflito” (Nobel da Paz 2020). Domesticamente, tem se afirmado que o Brasil, que havia deixado o Mapa da
Fome em 2014, corre risco de voltar a essa classificação em razão do aumento da
extrema pobreza trazida com a pandemia (Brasil no Mapa da Fome).
A
despeito da importância do problema nos dias atuais, a indagação que se lança é
se a fome realmente possui hodiernamente esse impacto na pobreza da população
mundial, defendido comumente. No jargão acadêmico, a pergunta seria se a fome,
ou má nutrição, configura-se em uma armadilha que mantém as pessoas na pobreza?
Na linguagem popular, armadilha é uma situação em que não se pode sair com os
recursos próprios à disposição. Em economia, o significado é similar e, no
presente caso, encontra o sentido de que a pessoa em situação de pobreza, por
ser pobre, não come o suficiente e, em não comendo, não consegue ser produtivo,
o que a impede de ganhar um salário maior e, assim, permanecendo pobre.
Em seu livro Economia da Pobreza (2012) , os laureados pelo Nobel em 2019, o casal economista, o indiano Abhijit Banerjee e a francesa-estadunidense Esther Duflo, defende que atualmente a maioria das pessoas no mundo não estão mais dentro de uma zona de armadilha de pobreza como no passado. À exceção de desastres naturais e conflitos humanos como guerras, todos podem, mesmo os mais pobres, comer o suficiente para realizar um trabalho produtivo e escaparem da pobreza. O livro foi escrito antes da atual crise de saúde da Covid-19 e, certamente, ela se enquadraria na classe dos desastres naturais excepcionalizados pelos autores. Portanto, o que segue são análises realizadas pertencentes a situações de normalidade diferentes de guerras ou crises pandêmicas.
O
tema é importante para desmistificar certezas de senso comum no combate à
pobreza e as consequentes elaborações de políticas públicas, no sentido de que
a debelação da fome deve ser algo priorizado. É conhecido que programas de
distribuição de alimentos, tais como a doação de cestas básicas ou a
implementação de restaurantes comunitários, geralmente podem distorcer preços
de mercado, redundam em ineficiências (em comparação à transferência de
dinheiro) e envolvem uma logística muito complicada, principalmente em grandes
territórios e com a diversidade cultural alimentar decorrente. Devemos trazer à
memória o fracasso do Programa Fome Zero em 2003, que foi substituído pelo
Programa Bolsa Família. Seria ainda válida essa estratégia para combater à pobreza
nos dias atuais, considerando que recursos devem ser bem aplicados, tendo em
vista as muitas alternativas?
Corajosamente,
os dois economistas colocam em xeque o fato de ainda existir fome para cerca de
um bilhão de pessoas e constroem uma argumentação sólida no sentido oposto,
trazendo teoria e exemplos em países como Índia, China e outros países
asiáticos e africanos.
O
primeiro pressuposto que é logo derrubado pelos estudiosos é o de que a pessoa
em situação de pobreza decide comer o quanto é possível, dado os recursos que
lhe estão disponíveis, suposição esta que se fosse verdade, indicaria a
necessidade de um esforço para vencer a armadilha de pobreza. No entanto, desvelam
que mesmo as pessoas em situação de extrema pobreza não têm investido todos
seus recursos em comida. E esse comportamento não tem sido devido à necessidade
de gasto em outros itens inevitáveis, tais como moradia, roupas ou remédios,
mas em despesas supérfluas como álcool, cigarro e até festas.
Na
base de dados com 18 países pobres trabalhada pelos estudiosos, alimentação
correspondia de 45 a 77% do consumo entre os extremamente pobres. Além disso, mesmo
entre os mais necessitados, cada dinheiro extra auferido não se convertia todo
em gastos com comida. Por exemplo, no estado de Maharashtra na Índia, mesmo
entre um público mais pobre, cada 1% de aumento das despesas gerais implicava
apenas 0,67% de aumento de gastos em comida.
No
Brasil, consultando a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2018, nas
famílias com renda familiar per capita
de até dois salários mínimos, o gasto médio com alimentação é de 22%, ao passo
que é de 0,5% com pacote de TV, internet e telefone; de 1,7% com recreação e
cultura; de 0,7% com fumo; de 1% com serviços pessoais de beleza; e de 1,5% com
despesas diversas, como jogos, apostas, cerimônias e festas.
Ainda
segundo os autores, ainda que se gastem os recursos a mais com alimentação, as decisões
das pessoas mais pobres não têm recaído sobre opções de alimentação mais
calóricas e nutricionais, pois, ao contrário, o que tem movido essas decisões é
o paladar. Ou seja, em função do paladar, elas têm optado por alimentos mais
caros, mas que proporcionam menor ingestão de calorias. Na China, essa preferência
por calorias não seria prioridade entre os domicílios urbanos, mas sim a
obtenção de alimentos mais apetitosos e de maior custo por caloria.
Essa
situação não é surpreendente ao se verificar o caso do Brasil. Basta se
observar, nesses rincões do Brasil, o que acontece quando um beneficiário do
Bolsa Família faz nas redondezas de uma agência em que efetuou o saque do
benefício. Toda sorte de comidas de baixo conteúdo calórico e nutricional são
compradas de imediato antes mesmo de se cruzar a rua: balinhas, algodão doce,
biscoito, etc. O pobre tem escolhido a comida não pelo preço ou valor
nutricional, mas pelo sabor. O desejo de satisfação rápida inibe o processo
decisório racional sobre o melhor uso do recurso financeiro. E as compras por
impulso ganham espaço e se efetivam, podendo impactar na aquisição de outros
itens que poderiam ser de maior necessidade para aquela família.
Um
outro exemplo trazido pelos autores é o puzzle da Índia, cuja população
tem apresentado obesidade e diabetes crescentes, não obstante a queda de
consumo de calorias per capita. Mais
de três quartos da população daquele país viveria em domicílios com consumo
diário per capita de calorias menor
do que 2.100 calorias nas áreas urbanas e 2.400 nas áreas rurais, valores estes
parâmetros mínimos requeridos. Inclusive, para qualquer faixa de renda,
inclusive as mais pobres, a proporção do orçamento dedicado à alimentação tem
caído no país.
No
Brasil, o fenômeno da obesidade também ocorre entre os mais pobres e surpreende
o senso comum e causa controvérsias políticas. É conhecido o episódio em que Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística, por meio da POF 2002-2003, identificou
que 40,6% dos brasileiros estavam obesos e que a pobreza no Brasil não se manifestava
mais pela fome, resultado que foi desacreditado pelo Presidente da República à
época (IBGE contesta declarações do presidente sobre a fome).
Dando
continuidade à sua análise, os autores admitem também o pressuposto da
racionalidade de que a pessoa em situação de pobreza sabe o que faz, ou seja,
se quisesse ser produtivo e aumentar seus ganhos para assim comer mais, ele o
faria. Mas como isso explicaria a queda de consumo calórico citado
anteriormente? Uma hipótese investigada por eles poderia ser o fato de que
comer mais nos dias de hoje não mais proporcionaria ganhos de produtividade e
assim não haveria armadilha de pobreza calcada na fome.
Atualmente,
a maioria das pessoas possuiriam o suficiente para comer. Graças a séculos de
avanços na agricultura e de intercâmbio de alimentos entre os continentes, a
disponibilidade de comida é capaz de alimentar cada um no planeta. Segundo os
autores, em 1996, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e
Agricultura (FAO) afirmou que a quantidade de comida seria suficiente para prover uma
dieta adequada de 2.700 calorias diárias por pessoa. Portanto, se existisse
fome ainda seria ela creditada à reconhecida má distribuição da comida. Não
obstante, os autores defendem que absoluta ausência não existiria e, mesmo as
pessoas mais pobres ganhariam o suficiente para uma dieta necessária, pois as
calorias têm-se barateado historicamente, exceto em situações extremas de
desastres naturais ou conflitos. Então, disponibilidade e preço não têm sido
obstáculos na maior parte dos lugares.
Todavia,
insistindo: por que as pessoas estariam comendo menos, se não há problema de
acesso à comida? A resposta dada pelos autores é de que as pessoas estão ingerindo
menos calorias, talvez porque tenham menos fome. Melhoramentos nos sistemas de
tratamento da água e saneamento têm levado a menor perda de nutrientes devido a
menos casos de diarreia e outras indisposições de saúde. Outra razão é o
declínio de trabalho pesado braçal, que exigiam no passado mais calorias. Se os
trabalhadores estão nesse ponto de saciedade, seria normal que passassem a
consumir menos comida. Devemos também considerar que os ganhos marginais de
produtividade por ingestão de caloria são maiores no início, mas vão diminuindo
à medida que se aproxime da saciedade. Tudo levaria a crer que, nos tempos
atuais, não há armadilha de pobreza causada estritamente pela fome.
Segundo
os autores, não havendo mais fome extrema, em vários lugares do globo as
pessoas em situação de pobreza passaram a valorizar outros confortos como os de
ter antena parabólica, televisão, aparelhos de DVD, celular, bem como gastos
com festividades, tais como casamentos, batismos e até sepultamentos
ostentosos, para o nível de renda dessas pessoas. Eles não identificaram
irracionalidade nas decisões dessa população, pois muitas vezes, não agem por
impulso, mas economizam por muito tempo para aquisição ou custeio desses
pequenos luxos. No caso brasileiro, pululam pelos telhados das casas precárias
de pau a pique antenas parabólicas, que mostram que esse comportamento também se
reproduz no país.
No
entanto, todo este entendimento traçado até agora cabe ressalvas. Os autores
perguntam se se deve assumir que os pobres comem tanto quanto precisam, apesar
de estarem comendo pouco. Em certas situações, a armadilha de pobreza devido à
má alimentação ainda procede. Tem sido amplamente comprovado por diversos
estudos que a alimentação deficiente das crianças, desde o útero à primeira
infância, costuma afetar todo o seu desenvolvimento cognitivo pelo resto da
vida. Então, continuam cruciais os programas de nutrição na gestação e na
infância.
Logo,
concluem os autores que atualmente, em cenários de normalidade, a maior parte da
população mundial, mesmo os mais pobres, não vive mais em uma zona de armadilha
de pobreza devido à fome, pois conseguem comer, bem ou mal, o suficiente para
que sejam produtivos. Pode haver, entretanto, outras armadinhas de pobreza que
não a de falta de acesso à alimentação. Um problema parece ser não a quantidade
de comida, mas a qualidade dela, quando se avaliam as deficiências nutricionais
encontradas agora em larga escala. Finalmente, assentam que a armadilha de
pobreza causada pela fome continua fazendo sentido, porém foi ela mais
importante no passado e ainda pode ser determinante em situações de calamidade.
Citam Amartya Sen, para quem, apesar da falta de comida não deixar ainda de ser
um problema mundial, o mundo tornou-se muito abundante para ser a fome o
principal deles.
Por
fim, parafraseando uma famosa canção brasileira de rock, as pessoas, seja qual
for a situação, não querem só comida, mas também diversão, arte, bebida, balé e
saída para qualquer parte. A comida é importante, mas não é tudo.
Referência:
Banerjee, Abhijit; Duflo, Esther. Poor Economics: a radical rethinking of the way to fight global poverty. PublicAffairs, 2020.
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