Buscando um substituto para o Auxílio Emergencial, a equipe econômica do governo tem elaborado soluções para um novo programa de transferência de renda que tenha não só valor mais robusto do que o do atual Bolsa Família, como também contemple um número maior de pessoas. A ideia é atender as pessoas oriundas da fila do Bolsa família, já existentes antes da pandemia, e do novo contingente de informais que têm padecido com o mercado de trabalho desaquecido.
Entretanto, as alternativas de fontes de custeio necessárias para a criação desse programa, tais como o fim do abono salarial, da farmácia popular e do seguro defeso, ou a desvinculação do salário mínimo de aposentadorias e pensões, ou mesmo o congelamento de salários dos servidores públicos, têm desagradado o Presidente da República, que defendeu não poder “tirar dos pobres para dar aos paupérrimos” e até desautorizou os técnicos a seguirem no desenho do novo programa.
Sim! Desvelaram-se os pobres,
aqueles que são menos pobres do que os paupérrimos, mas ainda assim passam por
privações. Esses pobres podem ser identificados naquela faixa da população que oscila
entre a pouca permanência em empregos de carteira assinada, a contumácia em empregos
precários e a necessidade crônica de transferências de renda ou qualquer outra
ajuda do Estado.
Entender quem são pobres ou
paupérrimos envolve conhecer adequadamente a distribuição de renda brasileira. Isso
é fundamental para bem posicionar os programas sobre os quais tem sido sugerida a extinção para liberação de recursos ao novo programa de renda. Restringindo-se à análise técnica, o objetivo seria
fortalecer o Bolsa Família, que é reconhecido nacional e internacionalmente
como um programa bem focalizado nas camadas mais pobres. Porém, o valor
reduzido dos benefícios, enquanto contribui para essa focalização, devido aos
valores atraírem principalmente os que necessitam dele, mostra-se insuficiente
para um combate mais amplo ao problema da pobreza, sobretudo no cenário
pós-pandemia que advirá.
A desigualdade de renda no Brasil
é uma das maiores do mundo e gera perversas distorções e ilusões nas políticas
públicas. A magnitude dessa desigualdade é tamanha que há de se ter cuidado na interpretação de curvas e indicadores a respeito. Como “o diabo esconde-se nos
detalhes”, um leigo pode ser facilmente enganado inclusive por estudos e
relatórios dos mais sérios e renomados.
A primeira implicação dessa
distorcida distribuição de renda é o fato de que não basta analisar apenas os decis de renda para avaliar se uma
determinada política social está bem focalizada nas camadas mais pobres. À
título de exemplo, pergunta-se o que se pode concluir da afirmação de que um
determinado programa atende os 30% mais ricos da população brasileira? Muitos
se precipitariam a achar que esse programa atende apenas os mais ricos da
população, sendo esta portanto uma indesejada intervenção estatal.
Da Pnad 2019, pode-se verificar
que o sétimo decil de renda per capita
familiar, considerando os rendimentos de todas as fontes, é de R$ 1.333,33. Em
outras palavras, os 30% mais ricos auferem uma renda per capita familiar mensal igual ou acima de R$ 1.333,33. Portanto, entre os
30%, há famílias que ganham tão pouco quanto R$ 1.333,33 por membro, quanto
famílias muito ricas e milionárias com rendimentos per capita dezenas de vezes maior. A distribuição de renda
acentuada faz com que faixas de renda acima de certo valor abranjam um grupo
muito heterogêneo, levando comumente a erros de leitura de indicadores sociais
tal como o apresentado.
E é comum se deparar com estudos
que utilizam desse expediente para convencer que algumas políticas são mal focalizadas
por atender uma parcela superior de renda da população, mas que na verdade
ainda contém beneficiários não ricos, melhor dizendo, pobres mesmo. Encomendado
pelo governo brasileiro há alguns anos, o relatório do Banco Mundial “Um Ajuste Justo” é um
exemplo dessa lógica de identificar programas regressivos, como o abono
salarial, que devem ser substituídos por aqueles mais progressivos, tal qual o
salário-família (vide publicação anterior). Coincidentemente, no momento atual a equipe econômica, com o objetivo de
injetar recursos no novo programa de renda substituto do Bolsa Família, cogitou
suprimir o abono salarial, benefício de no máximo um salário mínimo pago a trabalhadores
que tenham recebido até o limite de 2 salários mínimos de remuneração média
mensal.
Quanto a isso, lembremos que o limite superior
de 2 salários mínimos, condição para a percepção do abono salarial, soma
atualmente a R$ 2.090,00, que, considerando o tamanho médio da família média
brasileira de 3 pessoas, corresponde a cerca de R$ 700,00 per capita mensal, valor este que faria os indivíduos dessa família
estarem, segundo a Pnad anual de 2019, entre os 60% mais ricos do país, ou
seja, não muito longe da metade superior da distribuição de renda.
Acrescentando-se ainda assim um abono máximo de R$ 1045,00 ao salário, no mês
de recebimento do benefício, a renda per
capita dessa família modelo subiria para R$ 1.045,00, o que a colocaria entre
as 40% mais ricas do país (PNAD). Clara fica a contradição entre a informação
sobre classificação de riqueza e a real capacidade de compra, precária, desse grupo de famílias.
Isso ocorre porque, com cerca R$ 700,00
de renda per capita mensal, um
brasileiro pode ser considerado entre os 60% mais ricos relativamente à distribuição
de renda tão desigual, mas é em termos absolutos, pelo contrário, um cidadão ainda
com privações de consumo e, por que não dizer, uma pessoa em situação de
pobreza. É salutar saber que o Departamento Intersindical de Estatísticas e
Estudos Socioeconômicos (Dieese) calcula que para 2020 o salário mínimo
necessário para sustentar uma família de 4 pessoas deveria ser de R$ 4.366,51 ( Salário minimo segundo o Dieese ), ou seja, cerca de R$ 1.100,00 per
capita, valor este bem superior, por exemplo, aos R$ 700,00 per capita do abono salarial, programa
cogitado de ser suprimido pelo governo.
Portanto, a divergência surgida
entre o Presidente da República e a sua equipe econômica reside no fato de que
o primeiro interpretou em termos absolutos a focalização de programas em
discussão, enquanto a sua equipe raciocinou em termos relativos. No caso dos
técnicos, seria válido retirar recursos para um novo programa de renda para os
pobres, inclusive, dos um pouco menos pobres. Essa tem sido a tônica das
interpretações econômicas, seja por organismos internacionais financeiros seja
por governos alinhados com essa lógica.
Convenientemente, reformas de
sistemas de proteção social nessa linha de pensamento econômico dominante podem
proporcionar uma queda na desigualdade de renda por alguns indicadores, entre
eles, o Coeficiente de Gini. Mas essa prescrição esconde que os referidos
indicadores seriam ainda muito melhores, caso os recursos fossem subtraídos de
camadas bem mais ricas do que as que tem sido objeto de análise. Uma das funções
clássicas governamentais é a de redistribuição de renda dos mais ricos para os
mais pobres. Neste papel, o governo brasileiro tem demonstrado ser um Robin
Hood portando uma aljava de flechas muito ruins de pontaria.
Em suma, foi necessária uma visão política, minimamente mais sensível que a puramente econômica, para estender as condições de pobreza para uma camada de pessoas que, não obstante dotada de rendimentos, passam por privações de consumo e limitações no seu desenvolvimento humano. Eis que essa discussão acabou por trazer a concepção de que a pobreza deve alcançar uma camada populacional localizada para além das linhas de pobreza consagradas antes da pandemia.
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