Em pleno século XIX, surgiu uma linha de
pensamento que impactou a forma de tratar a pobreza e a desigualdade – o
Utilitarismo.
Em contraste com as teorias contratualistas de
Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau (ver post anterior), o Utilitarismo inovou com o conceito subjetivo de utilidade, uma medida
criada para espelhar ao máximo uma noção de bem-estar ou satisfação dos agentes
econômicos, digamos, uma mensuração viável para a dita felicidade das pessoas.
O Utilitarismo deu suporte ao papel redistributivo do Estado, mas desprezando a
visão de direitos e liberdades dos mais pobres trazida na teoria do contrato
social.
Para melhor entender isso, devemos lançar mão
de uma matemática mínima. O filósofo inglês Jeremy Bentham (1748-1832) é considerado o fundador da escola
utilitarista de filosofia moral, em que defendia que o bem-estar geral deveria
considerar a soma dos níveis de bem-estar de cada indivíduo. Motivado por
reformas práticas na política, cujo intervencionismo rejeitava a ideia de
direitos naturais dos homens, o filósofo se interessava apenas pelas
consequências das escolhas sociais que, entre ganhos de alguns e perdas de
outros, acabaria por aumentar o bem-estar geral de uma sociedade. A conhecida
função de bem-estar utilitarista clássica ou de Bentham é dada pelo somatório
da utilidades ui
de cada indivíduo i da sociedade.
Assim, sendo o bem-estar de uma sociedade a soma do bem-estar de todos os seus
componentes, a citada função implicava que todos os indivíduos deveriam
importar nas decisões políticas.
Considere que essas funções ui dependam das
rendas xi e que tenham forma de raiz quadrada, ou seja, u(xi)
= raiz quadrada (xi). Seja hipoteticamente uma sociedade que
contenha n=4 indivíduos e que as suas rendas estejam distribuídas de acordo com a
segunda coluna da tabela a seguir. Perceba que a função raiz quadrada gera uma
utilidade marginal de renda decrescente, pois acréscimos proporcionais de renda
resultam em aumentos da utilidade cada vez menores proporcionalmente, como pode ser visto
pelo pequeno aumento da utilidade (na terceira coluna), não obstante o grande
aumento da renda (na segunda coluna). A renda total dessa sociedade é 78 e o
bem-estar total é 14.
Indivíduo i
|
Renda inicial
|
Utilidade inicial
|
Renda após transferências
|
Nova utilidade
|
1
|
1
|
1
|
4
|
2
|
2
|
4
|
2
|
9
|
3
|
3
|
9
|
3
|
16
|
4
|
4
|
64
|
8
|
49
|
7
|
Total
|
78
|
14
|
78
|
16
|
Agora, suponha que haja uma redistribuição de renda,
em que o indivíduo 4 repasse 15 unidades monetárias para os demais. Digamos que os
indivíduos 1, 2 e 3 recebam, respectivamente, 3, 5 e 7 unidades monetárias,
resultando em rendas finais como as registradas na quarta coluna da tabela. Note
que, com essa redistribuição, a renda total permanece inalterada em 78.
Todavia, agora o bem-estar total se eleva para 16, o que exemplifica um caso
recomendável de resultados buscado pelo Utilitarismo.
Portanto, o Utilitarismo proveu uma fundamentação
sobre como a renda deveria ser distribuída na sociedade. Conjugado com o fato
de a utilidade marginal de renda ser decrescente, o utilitarismo previa que a
transferência de um determinado valor de indivíduo(s) rico(s) para aquele(s) pobre(s) –
preservando a média de renda – implicaria melhor bem-estar social geral dessa
sociedade. Não que a igualdade de renda fosse algo intrinsecamente desejável,
mas antes um meio para elevar o bem-estar geral da sociedade. Não à toa, o
receituário utilitarista promoveu apenas políticas de limitada redistribuição
de renda.
O modelo utilitarista tornou-se a “teoria oficial” da
tradicional economia do bem-estar (welfare
economics). A lógica utilitarista proporcionava às decisões de políticas
públicas razão e, algumas vezes, elementos empíricos. Bentham e seus seguidores,
como John Stuat Mill, entendiam que o governo era um mal necessário e que
qualquer nova política pública deveria ser submetida ao crivo do Utilitarismo. Outros
economistas atacaram essa escola de pensamento tachando-a como um período de laissez-faire, apesar dos avanços de
análise em politicas públicas buscando a maximização do bem-estar geral.
O Utilitarismo era um exemplo do que os filósofos
chamavam de consequencialismo, bem explicada pela máxima de que “os fins
justificam os meios”. Para essa escola de pensamento, as ações deveriam ser
julgadas pelos resultados, não importando as ideias de direito e justiça, que
contemplariam o comportamento individual e o processo sociopolítico subjacente.
Até metade do século XIX, já era amplamente aceito que
o Estado deveria interceder nas desigualdades sociais. Mas a concepção continuava
a de que a pobreza era um estado natural, os pobres ainda eram culpados pela
situação de pobreza (principalmente, pela excessiva reprodução) e o Estado poderia
fazer ainda muito pouco. Mesmo políticas de proteção eram efetivadas apenas em
casos extremos. O mais progressista dos utilitaristas chegava a pregar apenas
política de promoção para a área da educação (privada) da classe trabalhadora,
tendo em vista a reduzir o crescimento populacional.
Também, até meados do século XIX perdurou um hiato de
pesquisa sobre pobreza, cuja última contribuição havia sido de Frederick Eden. Na saúde pública,
sobressaiu a descoberta da contaminação da água bebida pelos londrinos e o cólera que assolou a população. Essa descoberta exigiu estudos avançados que hoje
se pareceriam com as modernas avaliações de impacto em políticas públicas. O
Dr. John Snow mapeou a incidência de mortes de cólera na já metrópole, levando
à evidenciação do problema. Esse exemplo inaugurou ações públicas de saneamento
que desvelariam falhas de mercado que impactavam a pobreza. As políticas
públicas não consistiam mais somente de transferências em dinheiro mais também de
provisão de serviços.
Alguns expoentes nos estudos sobre a pobreza nessa época, entre eles pesquisadores
sociais e jornalistas, foram Friedrich
Engels (descrição das condições dos tralhadores em Manchester nos anos de
1840), Henry Mayhew (colunas em jornais sobre a pobreza em Londres nos anos de 1840),
Frederic Le Play (estudos sobre o orçamento das famílias trabalhadoras na
Europa) e Mathew Carey (uso de dados de orçamento e salários das famílias
pobres na Filadelfia nos anos de 1830).
Por volta de metade do século XIX, dados quantitativos
e análises estatísticas começavam a contribuir para uma melhor leitura da
pobreza. O estatístico alemão Ernst Engel
(1857) estudou a relação entre gastos em alimentação e o total dos gastos
familiares. Estes estudos resultaram na famosa Lei de Engel, que afirmava que, quanto
mais pobre a família, maior seria a proporção do orçamento destinada à alimentação,
ou de outra forma, anunciava a inelasticidade renda da demanda por alimentos.
Destacam-se também Charles Booth e Seebohm
Rowntree, que documentaram as condições de vida dos pobres em Londres e
York nos fins do século XIX. Fizeram uso de pesquisas domiciliares,
evidenciando as condições precárias da pobreza inglesa, mas também apontando melhora
das condições de vida da classe trabalhadora em comparação aos primeiros 50
anos do século. Atribui-se a Booth a adoção da primeira linha de pobreza – denominada de linha frugal – para mensurar o
problema. Estimou-se que cerca de 1 milhão de londrinos eram pobres, algo como
1/3 da população.
Esses relatórios influenciaram a introdução da pensão pública
(1908) e da previdência nacional (1911) na Inglaterra. Robert Hunter (1904)
procedeu a similares estudos nos Estados Unidos, estimando 10 milhões de pobres
em 1900, enquanto Mann realizava tais estudos também na Índia.
O final do século XIX testemunhou o surgimento de
técnicas estatísticas que foram muito úteis para a economia e as ciências
sociais, auxiliando a pesquisa sobre a pobreza e políticas de combate à
pobreza. A regressão linear emergiu da biologia com a contribuição do Sir
Francis Galton sobre herança. Karl
Pearson (1896) desenvolveu a formulação tradicional que acabou sendo
utilizada nas ciências sociais aplicadas.
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