sexta-feira, 14 de setembro de 2018

A História da Pobreza – em meados do século XX – por Ravallion (9)

Os anos pós-guerra foram marcados pela queda significativa dos números de extrema pobreza e por muitas inovações nos pensamentos econômico e filosófico que influenciaram as políticas antipobreza.

Observando o gráfico de incidência de pobreza, percebe-se claramente uma quebra nos anos 50 em razão de uma aceleração na redução da extrema pobreza. Mais ainda: a taxa de extrema pobreza continuou em queda atingindo atualmente patamares historicamente bem reduzidos.



Contribuiu para essa trajetória decrescente da pobreza uma segunda onda de pensamentos econômicos. Diferentemente dos primeiros em fins do século XVIII (posts anteriores), que aconteceram em um ambiente de aumento generalizado de pobreza na velha Europa em transformação, a recente eclosão de ideias em favor de políticas antipobreza ocorreu em tempos de questionamentos radicais e instabilidades, mas sem aumento dos índices de pobreza, ao menos nos países ricos. As demandas desta vez eram por novas liberdades no mundo. Nos países ricos, aconteceram movimentos civis e sociais, a exemplo dos movimentos pela paz e equidade social de gênero na década de 60. Nos países pobres, sobrevieram movimentos de independência nacional acompanhados por revoltas políticas e econômicas, tal qual a independência de dezenas de países africanos.

Esse contexto de transformações sociais e políticas foi acompanhado do advento de novas opções teóricas na economia, em especial do paradigma do utilitarismo clássico utilizado majoritariamente nas ações públicas contra a pobreza e a e desigualdade (veja sobre o utilitarismo). O utilitarismo era criticado pela sua omissão quanto aos direitos e liberdades dos pobres e pela neutralidade em relação às desigualdades de bem-estar, afinal de contas, por essa teoria, perdas dos mais pobres poderiam ser compensadas pelos ganhos suficientemente altos dos mais ricos.

Em uma frente de renovação, a teoria econômica passou a ser invadida por valores éticos de auxilio aos mais pobres, redundando em príncipios de justiça social, o que veremos no próximo post. Na década de 70, houve também tentativas de remodelar o utilitarismo incorporando a aversão à desigualdade das utilidades. Por elas, o bem-estar social marginal – o gradiente de bem-estar referente à mais alta utilidade marginal – cairia com o nível dessa utilidade.

Na década de 80, uma nova teoria econômica controversa emergiu da consideração da importância de direitos e liberdades individuais. A liberdade de trocas em prol de um mercado competitivo já era algo valorizado de longa data pela economia. Entretanto, colocar novos direitos e liberdades na ciência causou contestações dos estudiosos tradicionais. Formulações não utilitaristas surgiram elevando as liberdades à questão central, tendo como teórico protagonista nessa linha, o economista indiano Amartya Sen.

Segundo Sen, deveriam ser atendidas funcionalidades, ações na vida das pessoas, tais como estar seguro, viver até a velhice com qualidade, estar empregado, e participar de atividades sociais e econômicas em geral. As capacidades consistiam de um conjunto de funcionalidades disponíveis a uma pessoa dadas as circunstâncias. Sen propôs que o bem-estar humano fosse mensurado pelas capacidades de uma pessoa. A ideia de pobreza advinha da deficiência de liberdades individuais para viver a vida que se desejasse, devido a uma série de privações de capacidades básicas.

Apesar da crítica ao utilitarismo, a teoria das capacidades não negou a racionalidade das pessoas, expressa pela importância da maximização das utilidades, nem que o bem-estar social deveria ser avaliado pelos níveis de bem-estar individuais, mas, pelo contrário, se contrapôs ao que era bem-estar e ao bem-estar baseado somente em bens (commodities) ignorando as diferenças entre as pessoas.

Até 1950, os economistas evitavam comparações distributivas entre as pessoas nas análises econômicas, fato que limitou o escopo de análise econômica normativa de pobreza e a distribuição de renda. Isso começou a mudar pela contribuição de muitos economistas a partir de então, como Kenneth Arrow (1951) e Amartya Sen (1970), que apontaram a necessidade, de alguma forma, de comparação interpessoal nas discussões de políticas antipobreza. Considerações éticas que eram vistas como item externo à ciência econômica tornaram novamente a ser consideradas nas análises de políticas.

Assim, a questão distributiva voltou a ganhar corpo. O tema distribuição havia sido uma questão central na economia clássica nos primórdios. A abordagem de David Ricardo baseado em classes exerceu grande influência no século XIX. Mas as definições de classes eram mais claras e revelantes à época do que nos dias de hoje. Atualmente, processa-se um mercado de trabalho crescentemente estratificado – ser um trabalhador assalariado não implica mais ser pobre –, bem como uma maior diversificação da propriedade do capital, haja vista novas instituições financeiras como os fundos de pensão.

O mais surpreendente é que o tema emergente, a desigualdade, sofreu resistência política de diversos lados. A direita via o tema desigualdade como um estopim para uma guerra de classes e, por isso, era avaliado como algo perigoso que deveria ser ignorado. Paradoxalmente, a esquerda radical via todo esse movimento como um esforço neoliberal de estratificar a classe trabalhadora de modo a distraí-la do que se julgava importante.

As décadas de 70 e 80 testemunharam uma profusão de novas medidas de pobreza e desigualdade, assuntos que estavam até então nas franjas da ciência econômica; mas não estariam mais.

Outros avanços surgiram a partir de contestações das premissas da economia clássica. A racionalidade foi atacada pela economia comportamental, que apontou as limitações da formulação das funções de utilidade. Critérios de bem-estar social e de otimalidade de Pareto também foram colocados em xeque para a condução de políticas sociais. Na década de 60, novas causas da pobreza foram concebidas por novas teorias, como a de retornos econômicos de capital humano de Gary Becker, que comparava e avaliava o investimento em educação em função dos retornos esperados futuros contra os custos correntes.

A economia clássica foi solapada pelos novos estudos na década de 50 que apontavam a existência de falhas de mercado, que evidenciavam imperfeições no funcionamento de mercados, entre eles os de trabalho e de crédito, que impactariam mais os pobres e justificavam a intervenção governamental.

As ideias de que o mercado de trabalho era competitivo e de que os salários se ajustariam até que o desemprego deparecesse já eram contestadas desde a Grande Depressão. A partir de década de 60, a concepção de um mercado de trabalho dual passou a ser reconhecido entre os países ricos. Existiria um equilíbrio para esse mercado com dois grupos: um com altos salários e outro com baixos salários. 
Esse fenômeno acontecia em decorrência do alto custo de monitoramento do esforço de trabalho exercido. Ao grupo de altos salários era dado um prêmio salarial para dotar a escolha dos trabalhadores  de incentivos econômicos, dada a dificuldade de se monitorar o esforço. Às atividades de baixo custo de monitoramento eram destinados baixos salários, consistindo de um segmento ocupado pelos mais pobres.

No mercado de crédito, o trabalho seminal de George Alerlof mostrou como o crédito poderia apresentar falhas de mercado em razão da assimetria de informação entre os emprestadores e os tomadores, o que prejudicaria predominantemente os mais pobres, pois estes, por não possuirem riqueza como garantia, representariam maior risco de empréstimo. Esse problema implicaria, como exemplo, subfinanciamento de educação das crianças pobres e um consequente aumento do trabalho infantil.

Por fim, foi amplamente aceito que desigualdades iniciais eram uma situação social persistente e que prejudicariam o progresso econômico, o que levou a adoção de políticas antipobreza de promoção, como leis de educação compulsória e amplo apoio orçamentário à educação.

No próximo post, abordaremos a teoria de justiça de John Rawls.

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Homens ganham mais do que as mulheres: lógico!


Junto a outros tipos de desigualdade sociais, a desigualdade de ganhos salariais entre homens e mulheres é um dos temas mais importantes dos nossos tempos, levantando polêmica contumazmente. Internacionalmente, a questão foi contemplada no Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) de número 5, que preconiza “alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”. Em âmbito nacional, tem sido alvo de debates políticos. Recentemente, um notório presidenciável defendeu que a diferença de salários entre homens e mulheres é algo esperado, não devendo o Estado se intrometer nos resultados produzidos pelo mercado. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, o rendimento médio das mulheres no Brasil em 2016 corresponde a 76,5% do dos homens, apesar do grau de instrução delas ser maior do que deles (https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/20234-mulher-estuda-mais-trabalha-mais-e-ganha-menos-do-que-o-homem.html).

Pergunta-se quais as razões que levam homens a ganharem mais do que mulheres. É conhecido o dilema enfrentado pelas mulheres na escolha entre a maternidade e a carreira. Poucas conseguem conduzir com sucesso ambos os projetos de vida. Além de expor estatísticas, estamos interessados em explorar causas dessa discrepância. O nível educacional e a experiência de trabalho menores impactam os resultados alcançados pelas mulheres? Qual a razão de algumas mulheres escolherem empregos tipicamente femininos ou mesmo ficarem fora do mercado de trabalho, dedicando-se à rotina dos trabalhos domésticos? A biologia diferente e os gostos inerentes entre os dois gêneros explicam essa diferença ou a discriminação histórica contra a mulher acaba por deixá-la em desvantagem?


No Brasil, as mulheres possuem uma escolaridade maior do que os homens. Entre os 25 e 44 anos de idade, 21,5% das mulheres, contra 15,6% dos homens, possuem nível superior completo no país. A Teoria do Capital Humano prediz que maior escolaridade leva a maiores salários, mas isso parece contradizer os resultados acima. Acontece que não basta analisar a escolaridade simplesmente tomando-se os resultados de conclusão no nível superior, pois salta à vista que as mulheres e homens costumam frequentar diferentes cursos universitários que podem influenciar em suas carreiras e na sua empregabilidade. Alguns cursos que possuem predominância de homens são considerados redutos masculinos com pouca penetração feminina. É exatamente neste ponto que a segregação ocupacional se inicia influenciando os rendimentos futuros.

O que vem impactar realmente os rendimentos é menos a educação e mais a experiência das mulheres no mercado de trabalho. As mulheres, por possuírem o privilégio da maternidade, acabam por se ausentarem do mercado, durante essa fase que se estende não raro até as crianças começarem na escola ou na creche. As mulheres que decidem pela maternidade acabam por se colocar em uma situação de desvantagem ao dos homens, que gozam do benefício de não sofrerem essas interrupções em suas carreiras. Esses períodos de afastamento geram perdas, uma vez que as habilidades e os conhecimentos sobre o trabalho realizado anteriormente geralmente se depreciam, novos conhecimentos disseminados deixam de ser aprendidos e, muitas vezes, há ainda o tempo extra de busca por um emprego adequado, nem sempre coincidindo qualitativamente com o anterior. Segundo Lang (2007), isso acaba por influenciar o comportamento das mulheres, que, por esperarem se afastar periodicamente dos trabalhos, tendem a investir menos em suas carreiras, assim como em empregos que demandam muito investimento em preparação.

E não são só filhos que afetam e interrompem as carreiras das mulheres. Como se não bastasse, o casamento costuma também empurrar as mulheres para os serviços domésticos, enquanto os homens permanecem no mercado de trabalho. Mesmo que os dois possuam habilidades domésticas, basta um pequeno diferencial de potencial de ganhos no mercado de trabalho por parte de um dos parceiros para levar o mais talhado deles a se dedicar ao trabalho externo, deixando o outro com os serviços domésticos (Lang, 2007). Essa é a realidade brasileira, tendo em vista que o IBGE revelou que em 2016 as mulheres, mesmo inseridas no mercado de trabalho, acumulavam afazeres domésticos e cuidados de pessoas, perfazendo 3 horas por semana em média a mais do que os homens. Considerando apenas cuidados pessoais e serviços domésticos, as mulheres brasileiras trabalhavam 18 horas semanais, 73% a mais do que as 10,5 dos homens (https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/20234-mulher-estuda-mais-trabalha-mais-e-ganha-menos-do-que-o-homem.html ).

Portanto, não é difícil perceber que isso leva mulheres a ocuparem mais vagas de professoras, enfermeiras, atendentes de serviços de bordo e diaristas, enquanto que homens são vistos mais em carreiras como médicos, pilotos, zeladores e jardineiros, criando certas estratificações de gênero. De acordo com Lang (2007), nos Estados Unidos, mesmo controlando por escolaridade e experiência, as pessoas que trabalham em ocupações com alta proporção de mulheres ganham menos do que ocupações semelhantes com baixas proporções de mulheres. Há um clara segregação ocupacional que prejudica salarialmente não só as mulheres, como também as ocupações em que as mulheres são a maioria.

Para elucidar o que ocorre no mercado de trabalho, Lang (2007) expõe diversos modelos de discriminação contra a mulher no mercado de trabalho que podem explicar em grande parte essas diferenças. Passamos a descrever um desses modelos abaixo.

Mais uma vez, a explanação do modelo fundamenta-se na maior probabilidade de as mulheres, perante os homens, se afastarem mais do trabalho, tendo em vista as razões já comentadas acima. A diferença de tratamento nesse mercado de trabalho pode ser atribuída ao fato de que o empregador não conhece se determinado trabalhador, seja homem ou mulher, pretende ou não se afastar do trabalho no futuro. Considerando a maior probabilidade de afastamento das mulheres, como o empregador não sabe se determinada mulher vai permanecer na vaga oferecida, por mais que ela pretenda não se afastar, ele não a contratará ao invés de um homem, porque, em fazendo, ele poderá incorrer em prejuízo, caso ela se afaste.

Melhor explicando, tomemos um exemplo elucidativo. Suponha um mercado de trabalho simplificado com dois períodos e ignoremos a taxa de desconto entre esses períodos. Suponha um tipo de emprego que não precise de treinamento para ser exercido. Trabalhadores neste emprego receberiam $10.000 por período. Agora, suponha um outro tipo de emprego que necessite de treinamento no primeiro período, antes do trabalhador conseguir bem produzir no segundo período. Neste caso, é oferecido um salário de $15.000 no primeiro período e um de $ 25.000 no segundo. Nesta situação, é fácil perceber que todos os trabalhadores desejarão trabalhar na segunda empresa que oferece treinamento.

No entanto, o problema é que o trabalhador que espera se afastar do emprego após o primeiro período trabalhado, também desejará o segundo tipo de emprego com treinamento, que pagaria $15.000 contra $10.000 que paga o outro. Neste cenário, os homens (os quais devem em grande parte permanecer na vaga pelos dois períodos) e as mulheres (algumas que se afastarão no segundo período) desejarão ambos competir pelas vagas desse tipo de emprego com treinamento. Do outro lado, a empresa proprietária da vaga com treinamento provavelmente não contratará a mulher, pois essa tem maior chance de, após treinada no primeiro período, afastar-se no período seguinte, fazendo com que a empresa perca o investimento realizado. Se a empresa pudesse reconhecer entre a mulher que se afastaria e aquela que não, a empresa poderia oferecer à segunda mulher a vaga, enquanto a outra, não. Mas a empresa não consegue distinguir entre os dois tipos de mulheres, o que leva a empresa a negar emprego para todas as mulheres. É o que o autor chama de discriminação estatística.

Este tipo de discriminação gera uma segregação ocupacional no mercado de trabalho, em que alguns empregos são mais para homens e outros são mais para mulheres. Mais do que isso, gera também uma desigualdade de resultados em que as ocupações típicas de homens pagam melhor do que as ocupações típicas de mulheres, acentuando a injustiça.

Para os Estados Unidos, Lang (2007) também aponta algumas estatísticas interessantes em relação aos resultados salarias para o advento do casamento. Quando comparados com homens ou mulheres solteiros com forças laborais semelhantes, os casais auferem um diferencial de salário: de 12% para os homens e de 4% para as mulheres. Ele apresenta que a razão para isso é o fato de que pessoas casadas, especialmente os homens, passam a ser dotados de maior senso de responsabilidade com a família e acabam trabalhando mais. Todavia, no caso de casais com dois filhos ou mais, os maridos têm prêmios de salário maiores do que os homens solteiros, enquanto que as esposas tem uma penalidade de cerca de 10% a menos em relação às mulheres solteiras. Já tratamos da especialização entre trabalhos domésticos e mercado de trabalho que geralmente acontecem entre mulheres e homens. Isso é agravado pelo oneroso sistema de proteção da primeira infância e pela política pouco generosa de licenças de maternidade e paternidade existentes nos Estados Unidos. Apesar das estatísticas serem americanas, nada nos afasta da hipótese de que algo semelhante deva acontecer no Brasil, ao menos em certo grau.

Aqui, aproximamo-nos do que é crucial na redução das desigualdades salariais entre os gêneros. Mesmo políticas públicas que exijam salários iguais entre homens e mulheres para a mesma vaga nas empresas são ainda insuficientes para proporcionar uma redução ainda maior das discrepâncias. Parece-nos incontestável e lógico, pelos modelos que foram descritos acima, que o fator principal a impactar a diferença de escolhas universitárias, a segregação ocupacional, discrepância entre salários e os tempos dedicados aos serviços domésticos, reside na obrigatoriedade da maternidade e no protagonismo dos cuidados da primeira infância exclusivamente para as mulheres. Para a primeira infância, a construção de creches já é uma política pública conhecida e amplamente aceita pela sociedade, devendo ser aprimorada cada vez mais no nosso país.

Para a questão da maternidade, há de se inovar para se buscar equalizar as situações laborais entre homens e mulheres, de modo a proporcionar igualdade de oportunidades a ambos no mercado de trabalho. Hoje, na iniciativa privada brasileira, a licença maternidade é de 120 dias e a licença paternidade, de 5 dias. Para equilibrar essa situação, alguns países e empresas pelo mundo têm decidido majorar a licença paterna de modo que ambas as licenças se equivalam, promovendo não só igualdade de gêneros, como também maiores cuidados dos pais com a primeira infância. Somos conscientes que uma decisão de política pública desse tipo envolveria também questões caras como direitos trabalhistas e interesses dos empregadores, uma vez que impactaria também a produtividade laboral da economia como todo. É uma escolha que sociedades devem fazer, decidindo se intervenções em prol da igualdade de gênero valem mais do que os efeitos negativos de eficiência econômica, ao menos mais imediatos.

Em suma, apesar de as mulheres terem conquistado um significativo espaço nas últimas décadas, ainda operam instituições sociais, segregações ocupacionais e discriminações – mesmo que as estatísticas – que as impedem de diminuir as diferenças de gênero. Ao contrário do conformismo por parte dos conservadores de que todos os avanços já foram efetuados, há ainda margem para melhorar comparativamente as remunerações das mulheres, bem como espaços que as mulheres precisam conquistar na nossa sociedade, como mais postos gerenciais e maior participação política.

Bibliografia: Lang, Kevin. Poverty and discrimination. Princeton University Press, 2007. 

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

A História da Pobreza – o novo pensamento no início do século XX – por Ravallion (8)

Na virada do século XX, a compreensão das causas da pobreza renovou-se. A pobreza deixou de ser vista como resultado das falhas morais dos mais pobres (apesar de nunca desaparecer completamente essa concepção) e passou a ser vista como consequência de choques e forças econômicas agravadas pela desigualdade já presente.

O economista Alfred Marshall, em Princípios da Economia (1890), reclamava que filhos de pais pobres recebiam pouca educação, o que o estimulou a elaborar várias políticas de combate à pobreza na modalidade de promoção, em que ações debelariam permanentemente a situação de pobreza. Para ele, as crianças deveriam ser auxiliadas a sair da pobreza, inclusive via financiamento por um imposto de renda progressivo. Também, antecipou a concepção de que a desigualdade é inibidora do desenvolvimento.

Na sociedade, as famílias mais pobres começaram a investir na educação dos seus filhos, uma vez que não só a saúde teveavanços derrubando as taxas de mortalidade, como também houve uma nova percepção de aumento da mobilidade social. Demandando por mais educação para o seus filhos, os pais objetivavam a própria melhora do bem-estar futuro, pois os sistemas de previdência ainda não se desenvolveram. Mas, ao contrário de antes, as famílias passaram a apostar na qualidade de suas crianças e não mais quantidade; a taxa de fertilidade caiu.

O advento de novas tecnologias auxiliou também no alívio da pobreza. O processo de Haber-Bosch de sintetizar a amônia em 1913 possibilitou a produção de fertilizantes nitrogenados e, consequentemente, o aumento de área plantada. Junto ao uso dos pesticidas, a produção de alimentos quadruplicou no século XX e afastou as previsões pessimistas de Malthus sobre a falta de comida e a explosão da pobreza, apesar do efeito danoso ao meio ambiente pelo uso desenfreado e ineficiente desses produtos.

Institucionalmente, pudemos ver movimentos nos Estados Unidos em limitar o poder político e econômico de grandes corporações (trusts) que, por meio de monopólios e oligopólios, distorciam o mercado e elevavam a desigualdade de riqueza. São dessa época a legislação antitruste, a Lei Sherman (1890), as novas regulações do sistema financeiro e as criações do Federal Trade Comission e do Federal Reserve Board, os correspondentes Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) e Banco Central americanos.

Após a primeira guerra mundial, ocorreu uma proeminência da preocupação com o bem-estar das crianças. Com isso, foram criados programas de transferência de renda paras viúvas decorrentes da guerra, assim como legislações que exigiam a entrada das crianças na escola, restringindo o trabalho infantil, com a proibição do trabalho insalubre delas. Nos Estados Unidos, o seu primeiro programa foi implementado um pouco antes da primeira guerra, o Mothers’ Pension, que fazia transferências em dinheiro para viúvas e mães solteiras com crianças. Foi criado no estado de Illinois e expandido para os outros estados nos 20 anos seguintes.

Academicamente, os economistas deixaram de ser importantes nas discussões sobre pobreza, o protagonismo foi transferido gradualmente para cientistas sociais e estatísticos. Em grande parte, os economistas aprisionaram-se na filosofia moral do utilitarismo (veja no post).

Uma exceção merece ser destacada. Uma mudança de rumo aconteceu com o economista e sociólogo Vilfredo Pareto, que, em seu Manual de Economia Política (1906), elaborou condições de otimalidade para decisões econômicas que prescindiam de comparações interpessoais como fazia o utilitarismo. Por esta corrente econômica, a comparação interpessoal se dava por meio da cardinalidade que era permitida pelas funções de utilidade. Pareto rejeitou qualquer ideia de utilidade cardinal e desenvolveu a sua economia com base em preferências ordinais, enunciando que alocação ótima de bens seria aquela máxima em que não se pudesse melhorar a situação de nenhuma pessoa, sem piorar a das demais pessoas.

Pareto mostrou que um processo de trocas livres possibilitaria atingir o ótimo em uma economia. Existiria uma única alocação ótima de Pareto dada uma dotação inicial dos agentes econômicos. Mais tarde, esse resultado seria formalizado como o Primeiro Teorema do Bem-estar econômico: equilíbrios de mercado competitivo são ótimos de Pareto. Acontece que qualquer distribuição inicial de dotação de bens, mesmo a mais desigual, pode alcançar um ótimo de Pareto – também desigual – por meio de uma economia de mercado. Esse fato levou os seguidores da economia Paretiana a defender que não cabia à economia comparar o bem-estar entre as pessoas, tornando esses julgamentos – do que é justo em uma sociedade –  externos à ciência econômica. No entanto, a otimalidade de Pareto influenciou trabalhos de justiça em outras áreas.

Mais marcante ainda nas ciências sociais foi a grande importância dada a incidência de pobreza absoluta como instrumento para medir o progresso social. Arthur Bowley (1915), professor de estatística da London School of Economics (LSE), afirmou que não haveria melhor teste para medir o desenvolvimento de uma nação do que a proporção de pobres. Nos Estados Unidos, Allyn Young (1917) advogou em favor de medidas distribucionais com base em níveis de renda e riqueza, em vez das novas medidas unidimensionais de desigualdade que estavam surgindo, a exemplo do Índice de Gini. A discordância se devia ao fato de que o índice de Gini considerava implicitamente como ideal uma desigualdade zero, o que, para ele, era impraticável e indesejável.

Assim, as primeiras décadas do século testemunharam o desenvolvimento de novas técnicas de amostragem estatística, em que se destacaram Arthur Bowley, Ronald Fisher e Jerzy Neyman. Os avanços metodológicos nas técnicas de amostragem permitiram a equipe da LSE, aconselhada por Bowley a partir de 1928, sistematizar pesquisas de campo domiciliares sobre a pobreza em Londres. Fisher, como subproduto dos seus experimentos na agricultura, registrado em Desenho de Experimentos (1935), gerou uma série de ferramentas de avaliações de programas antipobreza, os quais passariam a ser conhecidos por avaliações de impacto.

As medidas de pobreza passaram a ser a principal aplicação da estatística social. Métodos de amostragem revolucionaram a coleta de dados de renda e despesas das famílias por meio das pesquisas amostrais efetuadas pelos órgãos nacionais de estatística. Vale destacar o órgão de estatística da Índia, que, na figura renomada do estatístico Prasanta Mahalanobis, iniciou em 1950 a medição da pobreza no país.



Historicamente, a Grande Depressão de 1929 trouxe um grande marco do papel do Estado para a estabilização macroeconômica, no esteio das contribuições e de John Maynard Keynes. Embora a preocupação fosse com o desemprego causado pela alegada falta de demanda agregada, a questão da pobreza que atingia a massa de desempregados não era um elemento distante. Na sua Teoria Geral de Emprego, Juros e Dinheiro (1936), de acordo com Keynes, era a estimulação da demanda agregada que conduziria ao pleno emprego e isso implicava uma maior parcela da renda nacional no bolso das famílias mais pobres para promover o crescimento econômico, pelo menos até que o pleno emprego fosse atingido. Ele se contrapôs ao fenômeno defendido pelos economistas sobre o conflito de promover crescimento e equidade concomitantemente.

Na verdade, Keynes não escreveu sobre pobreza e desigualdade, mas acerca de como a alta taxa de desemprego atrapalharia a demanda agregada na economia, prejudicando a recuperação econômica. O argumento de que a propensão marginal de consumo seria superior para as famílias mais pobres, o que sugeria redistribuição dos ricos para os pobres para promover aumento da demanda agregada e redução do desemprego, solapou a ideia fixa do conflito crescimento-equidade. Posteriormente, novas pesquisas de comportamento de consumo intertemporal, tais como a hipótese de renda permanente de Friedman, apontaram que esse efeito redistributivo do keynesianismo desapareceria no longo prazo. Mas, Keynes estava preocupado apenas com o curto prazo e anunciava que

no longo prazo nós todos estaremos mortos. Economistas se colocam tão facilmente em uma tarefa inútil se, em épocas tempestuosas, eles somente podem dizer-nos que, quando a tempestade longa passar, o oceano volta à calmaria novamente [tradução livre].

No esteio da teoria keynesiana e da Grande Depressão, o Presidente americano Franklin Roosevelt introduziu uma série de novos programas sociais, entitulados New Deal, com destaque para a legislação de seguridade social, que incluiu a pensão para os idosos, transferências para famílias com crianças dependentes e benefícios para os desempregados. O imposto de renda progressivo introduzido anteriormente pelo presidente Willian Taft proporcionou o financiamento para essas iniciativas. Apesar de serem políticas de proteção em vez de promoção, essas ações governamentais representaram um alívio para a pobreza. Disse Roosevelt (1937) que “o teste de nosso progresso não é se nós adicionamos mais de nossa abundância para aqueles que tem muito; mas se nós provemos o bastante para aqueles que tem tão pouco”.

No próximo post sobre a história da pobreza, abordaremos o novo surto de pensamentos e ideias sobre a luta contra a pobreza.

terça-feira, 21 de agosto de 2018

A imperiosa multidimensionalidade da pobreza

Na última semana, o Fundo das Nações Unidas para a Infância, o Unicef, publicou o seu relatório acerca da pobreza na infância e adolescência no Brasil (https://www.unicef.org/brazil/pt/resources_38766.html). O estudo mostra a importância de se escolher bem um indicador para medir grandezas tão difíceis como o é a pobreza. O organismo internacional optou por uma mensuração multidimensional da pobreza – baseada nas privações de educação, informação, trabalho infantil, moradia, água e saneamento – , em contraposição ao governo federal brasileiro, que tem insistido, há anos, em um indicador unidimensional monetário.

Segundo o relatório, mais de 18 milhões de crianças e adolescentes (34,3% do total) viviam, no ano de 2015, em domicílios com renda per capita inferior a uma cesta básica, estimada em R$ 346,00 per capita mensal na zona urbana e em R$ 269,00 na zona rural. No entanto, desses 18 milhões, 6 milhões (11,2%) possuem apenas insuficiência de renda, enquanto 12 milhões (23,1%) têm não só renda insuficiente, como também possuem um ou mais direitos negados, ou seja, uma situação de privação múltipla. Acrescenta-se a esses 12 milhões, mais de 14 milhões de crianças e adolescentes que, apesar de não serem pobres monetariamente, possuem uma ou mais privações, resultando em uma população de 27 milhões de crianças e adolescentes (49,7%), quase metade da população até 17 anos. O quadro abaixo esquematiza melhor os percentuais apontados acima.


Fonte: Relatório “Pobreza na Infância e Adolescência” do Unicef

Fácil perceber a discrepância entre a medida unidimensional monetária, baseada só na insuficiência de renda, que aponta para 34,3% da população, e a medida multidimensional, que se apoia em seis tipos de privações, que perfazem o percentual de 49,7% da população. As duas situações se interceptam apenas em 23,1% dos casos, ou seja, nos quais as crianças e adolescentes possuem renda insuficiente e privação múltipla concomitantemente.

Por mais que haja vários graus de liberdade que permitam que sejam encontradas diferentes medidas unidimensionais – há várias formas de se estabelecer o corte monetário – , bem como uma diversidade de medidas multidimensionais – a seleção das privações e os correspondentes cortes de privação são inúmeros –, os dois tipos de medidas desaguam frequentemente em resultados muito distintos e em públicos divergentes entre os considerados pobres.

Sem adentrar às escolhas metodológicas pormenorizadas do Unicef, restringimo-nos a comentar sobre a opção pela uma medição multidimensional para o público infantil e adolescente. Neste aspecto, o Unicef segue uma outra agência das Nações Unidas (ONU), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o PNUD, que, de longa data, tem adotado, para a população em geral, um índice multidimensional de pobreza, o Global MPI (Multidimensional Poverty Index), que engloba dez indicadores distribuídos em educação, saúde e condições de vida, para estimar a pobreza nas nações em desenvolvimento.

Além desse índice multidimensional mundial de pobreza calculado em níveis nacionais por agências da ONU, há diversos países, muitos deles nossos vizinhos latino-americanos, que estão partindo para métodos de cálculo multidimensional da pobreza. A título de exemplo, o México é, de longe, o país que tem vasta experiência em medições multidimensionais. Mais próximos, a Colômbia e o Chile – para apenas citar dois outros exemplos – optaram, há alguns anos, em ter estimações multidimensionais da pobreza.

Essa decisão pela multidimensionalidade da medida de pobreza não se configura em uma simples “moda”, mas em um avanço metodológico que apresenta várias vantagens. Primeiro, um índice muldimensional de pobreza está em consonância com o maior teórico sobre o tema da nossa época, o economista Amartya Sen, que prescreve como causa da pobreza as privações de diversas liberdades que poderiam impulsionar o potencial humano. Segundo, ao se considerarem múltiplas privações, um índice multidimensional consegue realizar leituras muito mais ricas do problema. É possível se descobrir não só se determinada pessoa é pobre, mas também em qual intensidade ela é pobre, bem como quais as privações que a tornam pobre. Uma coisa é apontar que uma pessoa é pobre porque vive em um domicílio de renda insuficiente. Muito mais útil é explicar que essa pessoa é pobre, porque tem saneamento precário e escolaridade deficitária, apesar de condições habitacionais normais e um nível de saúde aceitável. Terceiro, um índice multidimensional de pobreza pode induzir governos que o adotam a pensarem e planejarem políticas públicas de modo sistêmico, fomentando a coordenação e articulação entre as diversas áreas de governo – que não são poucas –responsáveis pelo combate à pobreza.

No Brasil, diferentemente da tendência mundial, temos usado, ao longo dos anos, índices unidimensionais de renda, nos quais uma pessoa ou domícilio é considerado pobre ou extremamente pobre, caso não atinja um certo patamar de renda per capita, conhecido por linha de pobreza. Atualmente, de acordo com o Bolsa Família, as famílias com renda por pessoa de até R$ 89,00 mensais são consideradas extremamente pobres e as com renda por pessoa entre R$ 89,01 e R$ 178,00 são pobres.

Os defensores dessas linhas de pobreza monetárias podem afirmar que são elas apenas linhas administrativas que procuram delimitar o principal programa do governo, viabilizando fiscalmente o seu financiamento e que, por isso, não se configuram em linhas de pobreza propriamente ditas. Acontece que essas linhas de pobreza são carregadas para os indicadores nacionais de pobreza. Quando o governo divulga que o país, nos últimos anos, retirou um determinado número de pessoas da pobreza, esses valores são quase sempre em relação a essas linhas pseudo-administrativas. O que é isso se não a influência desses valores sobre um elemento fundamental nas políticas públicas, que é a sua avaliação por meio de seus indicadores, o que serve para examinar o sucesso da política pública, rendendo inclusive dividendos políticos para os governos de plantão?

O pior é a opacidade que um índice de pobreza unidimensional via linha de pobreza monetária gera na atuação governamental, que, ao mirar apenas na renda, pode dar menor prioridade ao conjunto de privações que aflige a população pobre, como as de educação e saúde. Não é a toa que o Programa Brasil Sem Miséria buscou, a partir de 2011, na égide da medida unidimensional de pobreza, quebrar essa visão simplificada e trabalhar explicitamente o caráter multidimensional da pobreza por meio de três pilares: garantia de renda, acesso aos serviços públicos e inclusão produtiva. Ainda assim, o governo federal não alterou o seu modo de estimar a pobreza para uma forma multidimensional, o que poderia, como argumentado anteriomente, ter impulsionado iniciativas intersetoriais de combate ao problema.

A pergunta que se faz é: por que a insistência do governo federal pela medida unidimensional monetária, quando a tendência mundial, seja dos organismos internacionais ou de países próximos, é pela multidimensionalidade, que apresenta vantagens metodológicas inegáveis, e mesmo quando o próprio governo reconhece que a pobreza é uma situação naturalmente multidimensional em seus documentos e iniciativas?

A explicação evidente reside no apego metodológico e no interesse político em volta da opção unidimensional.

O principal programa governamental contra a pobreza é o Bolsa Família, que consiste, entre outras coisas, na transferência de renda para as famílias alcançarem a linha de extrema pobreza. Por sua vez, o indicador de pobreza fundamenta-se em quantos estão em sistuação de extrema pobreza, ou do mesmo modo, quantos saíram da extrema pobreza. É claro que para alcançarem valores satisfatórios desse indicador, basta o referido Programa transferir renda suficiente para o público correto, o que o programa faz eficientemente. Perceba que o indicador e as suas estimativas divulgadas representam um resultado, digamos, tautológico deste programa transferidor de renda e não, necessariamente, um impacto certo nas condições de pobreza das famílias. É muito provável, assim como visto no relatório da Unicef, que aquelas famílias que não apresentem mais insuficiência de renda pelo Bolsa Família possuam ainda várias privações que esta transferência governamental não foi capaz de resolver e que ainda estão por serem solucionadas, entre os quais os nossos péssimos resultados educacionais e de condições de vida.

Nunca é demais advertir que não se advoga aqui contra o Programa Bolsa Família. Ao contrário, entende-se que ele é necessário, apesar de insuficiente. O que não se pode aceitar é o governo federal, com a adoção de um esquema duplo de programa de transferência de renda e indicador unidimensional monetário atrelado, querer dar um aspecto de suficiência de sua atuação na luta contra a pobreza.

Está mais do que na hora de o Brasil avançar para uma mensuração multidimensional, norteando inovações de políticas públicas de pobreza com medições adequadas e não simplesmente tautológicas.

terça-feira, 29 de maio de 2018

A História da Pobreza – Socialismo e movimentos trabalhistas – por Ravallion (7)


Antes de deixarmos o século XIX, não poderíamos nos esquecer do surgimento do pensamento socialista, linha de pensamento que teria repercussões duradouras. O socialismo, que emergiu como resposta à pobreza e como protesto contra a indiferença das classes mais ricas, também deu suporte aos diversos movimentos trabalhistas vindouros. O catalisador da eclosão do movimento socialista foi a rápida industrialização urbana e as péssimas condições dos trabalhadores à época da revolução industrial.

Como escola principal de pensamento socialista, o Marxismo defendia que o Capitalismo era a causa da pobreza. Segundo Karl Marx (1818-1883), a pobreza resultava da exploração do trabalho pela produção dos capitalistas, que visavam avidamente mais e mais lucros. A produção dos capitalistas geravam excedentes que eram reinvestidos levando à acumulação de capital e riqueza, enquanto que a classe trabalhadora, pobre demais, não conseguia realizar qualquer poupança, situação que agravava a desigualdade no século XIX.

Foto: Karl Marx

A partir das ideias de David Ricardo (1772-1823), Marx desenvolveu a teoria do valor-trabalho – teoria que trata da distribuição do produto entre a renda da terra, os salários dos trabalhadores e os lucros capitalistas – passando a atribuir ao trabalho assalariado todo o valor da produção capitalista. Para Marx, os salários pagos aos trabalhadores em níveis de subsistência existiam não porque eram resultado do equilíbrio do mercado de trabalho afetado pelo crescimento populacional defendido assim pelos economistas clássicos, mas porque eram determinados por normas sociais dominantes, que deveriam ser combatidas por organizações trabalhistas fortes, sem as quais a “reserva de desempregados” continuaria a ser um impedimento para a obtenção de melhores salários. Deste modo, Marx rejeitava o fato de a pobreza ser um estado natural, mas antes afirmava que era um resultado do contexto social à época.

Quando se analisa o Marxismo em termos de contribuição para as políticas públicas, Ravallion (2016) identifica uma visão ambígua. A solução marxista para a pobreza era o Comunismo, que em seu radicalismo rejeitava a distribuição paliativa proporcionada pelo Capitalismo, que inclusive atrapalharia e adiaria as defendidas transformações revolucionárias. Assim, o Estado não era visto no seu papel redistributivo tendo em vista a aplacar a pobreza. Apesar dessas ambiguidades, o Manisfesto Comunista (1848) de Karl Marx e Friedrich Engels são tomados hoje em dia como sustentação teórica para muitas medidas políticas e econômicas de combate à pobreza, tais como imposto de renda progressivo e a educação pública gratuita.

Confrontando a teoria do valor-trabalho de Marx elaborada em O Capital (1867), Leon Walras apresentou o modelo de equilíbrio geral competitivo (1874), que se tornou a linha de pensamento hegemônica na economia e baluarte teórico para o Capitalismo. No entanto, o equilíbrio walrasiano não contemplou as forças históricas, sociais e políticas que influenciavam a economia, tal como Marx o fez.

As organizações políticas socialistas e os movimentos trabalhistas na Europa e nos Estados Unidos promoveram uma série de políticas públicas progressistas já nos últimos anos do século XIX por duas razões. A primeira é que os setores conservadores, por medo de instabilidades social e política ou até mesmo de revoluções, começaram a defender melhorias para as classes trabalhadoras, a exemplo da introdução da previdência social por Bismarck na Alemanha nos anos de 1880 com intuito de afastar os trabalhadores dos movimentos socialistas. Já a segunda razão é que as coalizões políticas compostas por trabalhadores e pensadores socialistas iniciaram lobbies para estender a proteção às classes mais pobres. Enquanto os trabalhadores já começavam a ser atendidos por uma previdência, passou-se a defender também que o restante de toda a sociedade deveria contar com uma previdência universal e políticas de combate à pobreza.

O advento de novas teorias redistributivas junto à produção de conhecimento sobre a pobreza abriram um largo caminho para o desenvolvimento do estado de bem-estar social no século XX, sobretudo nos países ricos, assunto para o próximo post.

segunda-feira, 21 de maio de 2018

A História da Pobreza – o Utilitarismo e outras pesquisas no Século XIX – por Ravallion (6)


Em pleno século XIX, surgiu uma linha de pensamento que impactou a forma de tratar a pobreza e a desigualdade – o Utilitarismo.

Em contraste com as teorias contratualistas de Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau (ver post anterior), o Utilitarismo inovou com o conceito subjetivo de utilidade, uma medida criada para espelhar ao máximo uma noção de bem-estar ou satisfação dos agentes econômicos, digamos, uma mensuração viável para a dita felicidade das pessoas. O Utilitarismo deu suporte ao papel redistributivo do Estado, mas desprezando a visão de direitos e liberdades dos mais pobres trazida na teoria do contrato social.

Para melhor entender isso, devemos lançar mão de uma matemática mínima. O filósofo inglês Jeremy Bentham (1748-1832) é considerado o fundador da escola utilitarista de filosofia moral, em que defendia que o bem-estar geral deveria considerar a soma dos níveis de bem-estar de cada indivíduo. Motivado por reformas práticas na política, cujo intervencionismo rejeitava a ideia de direitos naturais dos homens, o filósofo se interessava apenas pelas consequências das escolhas sociais que, entre ganhos de alguns e perdas de outros, acabaria por aumentar o bem-estar geral de uma sociedade. A conhecida função de bem-estar utilitarista clássica ou de Bentham é dada pelo somatório da utilidades ui de cada indivíduo i da sociedade. Assim, sendo o bem-estar de uma sociedade a soma do bem-estar de todos os seus componentes, a citada função implicava que todos os indivíduos deveriam importar nas decisões políticas.

Considere que essas funções ui dependam das rendas xi e que tenham forma de raiz quadrada, ou seja, u(xi) = raiz quadrada (xi). Seja hipoteticamente uma sociedade que contenha n=4 indivíduos e que as suas rendas estejam distribuídas de acordo com a segunda coluna da tabela a seguir. Perceba que a função raiz quadrada gera uma utilidade marginal de renda decrescente, pois acréscimos proporcionais de renda resultam em aumentos da utilidade cada vez menores proporcionalmente, como pode ser visto pelo pequeno aumento da utilidade (na terceira coluna), não obstante o grande aumento da renda (na segunda coluna). A renda total dessa sociedade é 78 e o bem-estar total é 14.

Indivíduo i
Renda inicial
Utilidade inicial
Renda após transferências
Nova utilidade
1
1
1
4
2
2
4
2
9
3
3
9
3
16
4
4
64
8
49
7
Total
78
14
78
16


Agora, suponha que haja uma redistribuição de renda, em que o indivíduo 4 repasse 15 unidades monetárias para os demais. Digamos que os indivíduos 1, 2 e 3 recebam, respectivamente, 3, 5 e 7 unidades monetárias, resultando em rendas finais como as registradas na quarta coluna da tabela. Note que, com essa redistribuição, a renda total permanece inalterada em 78. Todavia, agora o bem-estar total se eleva para 16, o que exemplifica um caso recomendável de resultados buscado pelo Utilitarismo.

Portanto, o Utilitarismo proveu uma fundamentação sobre como a renda deveria ser distribuída na sociedade. Conjugado com o fato de a utilidade marginal de renda ser decrescente, o utilitarismo previa que a transferência de um determinado valor de indivíduo(s) rico(s) para aquele(s) pobre(s) – preservando a média de renda – implicaria melhor bem-estar social geral dessa sociedade. Não que a igualdade de renda fosse algo intrinsecamente desejável, mas antes um meio para elevar o bem-estar geral da sociedade. Não à toa, o receituário utilitarista promoveu apenas políticas de limitada redistribuição de renda.

O modelo utilitarista tornou-se a “teoria oficial” da tradicional economia do bem-estar (welfare economics). A lógica utilitarista proporcionava às decisões de políticas públicas razão e, algumas vezes, elementos empíricos. Bentham e seus seguidores, como John Stuat Mill, entendiam que o governo era um mal necessário e que qualquer nova política pública deveria ser submetida ao crivo do Utilitarismo. Outros economistas atacaram essa escola de pensamento tachando-a como um período de laissez-faire, apesar dos avanços de análise em politicas públicas buscando a maximização do bem-estar geral.

O Utilitarismo era um exemplo do que os filósofos chamavam de consequencialismo, bem explicada pela máxima de que “os fins justificam os meios”. Para essa escola de pensamento, as ações deveriam ser julgadas pelos resultados, não importando as ideias de direito e justiça, que contemplariam o comportamento individual e o processo sociopolítico subjacente.

Até metade do século XIX, já era amplamente aceito que o Estado deveria interceder nas desigualdades sociais. Mas a concepção continuava a de que a pobreza era um estado natural, os pobres ainda eram culpados pela situação de pobreza (principalmente, pela excessiva reprodução) e o Estado poderia fazer ainda muito pouco. Mesmo políticas de proteção eram efetivadas apenas em casos extremos. O mais progressista dos utilitaristas chegava a pregar apenas política de promoção para a área da educação (privada) da classe trabalhadora, tendo em vista a reduzir o crescimento populacional.

Também, até meados do século XIX perdurou um hiato de pesquisa sobre pobreza, cuja última contribuição havia sido de Frederick Eden.  Na saúde pública, sobressaiu a descoberta da contaminação da água bebida pelos londrinos e o cólera que assolou a população. Essa descoberta exigiu estudos avançados que hoje se pareceriam com as modernas avaliações de impacto em políticas públicas. O Dr. John Snow mapeou a incidência de mortes de cólera na já metrópole, levando à evidenciação do problema. Esse exemplo inaugurou ações públicas de saneamento que desvelariam falhas de mercado que impactavam a pobreza. As políticas públicas não consistiam mais somente de transferências em dinheiro mais também de provisão de serviços.


Alguns expoentes nos estudos sobre a pobreza nessa época, entre eles pesquisadores sociais e jornalistas, foram Friedrich Engels (descrição das condições dos tralhadores em Manchester nos anos de 1840), Henry Mayhew (colunas em jornais sobre a pobreza em Londres nos anos de 1840), Frederic Le Play (estudos sobre o orçamento das famílias trabalhadoras na Europa) e Mathew Carey (uso de dados de orçamento e salários das famílias pobres na Filadelfia nos anos de 1830).

Por volta de metade do século XIX, dados quantitativos e análises estatísticas começavam a contribuir para uma melhor leitura da pobreza. O estatístico alemão Ernst Engel (1857) estudou a relação entre gastos em alimentação e o total dos gastos familiares. Estes estudos resultaram na famosa Lei de Engel, que afirmava que, quanto mais pobre a família, maior seria a proporção do orçamento destinada à alimentação, ou de outra forma, anunciava a inelasticidade renda da demanda por alimentos.

Destacam-se também Charles Booth e Seebohm Rowntree, que documentaram as condições de vida dos pobres em Londres e York nos fins do século XIX. Fizeram uso de pesquisas domiciliares, evidenciando as condições precárias da pobreza inglesa, mas também apontando melhora das condições de vida da classe trabalhadora em comparação aos primeiros 50 anos do século. Atribui-se a Booth a adoção da primeira linha de pobreza – denominada de linha frugal – para mensurar o problema. Estimou-se que cerca de 1 milhão de londrinos eram pobres, algo como 1/3 da população. 

Esses relatórios influenciaram a introdução da pensão pública (1908) e da previdência nacional (1911) na Inglaterra. Robert Hunter (1904) procedeu a similares estudos nos Estados Unidos, estimando 10 milhões de pobres em 1900, enquanto Mann realizava tais estudos também na Índia.

O final do século XIX testemunhou o surgimento de técnicas estatísticas que foram muito úteis para a economia e as ciências sociais, auxiliando a pesquisa sobre a pobreza e políticas de combate à pobreza. A regressão linear emergiu da biologia com a contribuição do Sir Francis Galton sobre herança. Karl Pearson (1896) desenvolveu a formulação tradicional que acabou sendo utilizada nas ciências sociais aplicadas.