Na última semana, o Fundo das Nações Unidas
para a Infância, o Unicef, publicou o seu relatório acerca da pobreza na
infância e adolescência no Brasil (https://www.unicef.org/brazil/pt/resources_38766.html).
O estudo mostra a importância de se escolher bem um indicador para medir
grandezas tão difíceis como o é a pobreza. O organismo internacional optou por
uma mensuração multidimensional da pobreza – baseada nas privações de educação,
informação, trabalho infantil, moradia, água e saneamento – , em contraposição
ao governo federal brasileiro, que tem insistido, há anos, em um indicador
unidimensional monetário.
Segundo o relatório, mais de 18 milhões de
crianças e adolescentes (34,3% do total) viviam, no ano de 2015, em domicílios
com renda per capita inferior a uma
cesta básica, estimada em R$ 346,00 per
capita mensal na zona urbana e em R$ 269,00 na zona rural. No entanto,
desses 18 milhões, 6 milhões (11,2%) possuem apenas insuficiência de renda,
enquanto 12 milhões (23,1%) têm não só renda insuficiente, como também possuem
um ou mais direitos negados, ou seja, uma situação de privação múltipla.
Acrescenta-se a esses 12 milhões, mais de 14 milhões de crianças e adolescentes
que, apesar de não serem pobres monetariamente, possuem uma ou mais privações,
resultando em uma população de 27 milhões de crianças e adolescentes (49,7%),
quase metade da população até 17 anos. O quadro abaixo esquematiza melhor os
percentuais apontados acima.
Fonte: Relatório “Pobreza na Infância e
Adolescência” do Unicef
Fácil perceber a discrepância entre a medida
unidimensional monetária, baseada só na insuficiência de renda, que aponta para
34,3% da população, e a medida multidimensional, que se apoia em seis tipos de
privações, que perfazem o percentual de 49,7% da população. As duas situações se
interceptam apenas em 23,1% dos casos, ou seja, nos quais as crianças e
adolescentes possuem renda insuficiente e privação múltipla concomitantemente.
Por mais que haja vários graus de liberdade que
permitam que sejam encontradas diferentes medidas unidimensionais – há várias
formas de se estabelecer o corte monetário – , bem como uma diversidade de
medidas multidimensionais – a seleção das privações e os correspondentes cortes
de privação são inúmeros –, os dois tipos de medidas desaguam frequentemente em
resultados muito distintos e em públicos divergentes entre os considerados
pobres.
Sem adentrar às escolhas metodológicas pormenorizadas
do Unicef, restringimo-nos a comentar sobre a opção pela uma medição
multidimensional para o público infantil e adolescente. Neste aspecto, o Unicef
segue uma outra agência das Nações Unidas (ONU), o Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento, o PNUD, que, de longa data, tem adotado, para a população
em geral, um índice multidimensional de pobreza, o Global MPI (Multidimensional
Poverty Index), que engloba dez indicadores distribuídos em educação, saúde
e condições de vida, para estimar a pobreza nas nações em desenvolvimento.
Além desse índice multidimensional mundial de
pobreza calculado em níveis nacionais por agências da ONU, há diversos países,
muitos deles nossos vizinhos latino-americanos, que estão partindo para métodos
de cálculo multidimensional da pobreza. A título de exemplo, o México é, de
longe, o país que tem vasta experiência em medições multidimensionais. Mais
próximos, a Colômbia e o Chile – para apenas citar dois outros exemplos –
optaram, há alguns anos, em ter estimações multidimensionais da pobreza.
Essa decisão pela multidimensionalidade da
medida de pobreza não se configura em uma simples “moda”, mas em um avanço
metodológico que apresenta várias vantagens. Primeiro, um índice muldimensional
de pobreza está em consonância com o maior teórico sobre o tema da nossa época,
o economista Amartya Sen, que prescreve como causa da pobreza as privações de
diversas liberdades que poderiam impulsionar o potencial humano. Segundo, ao se
considerarem múltiplas privações, um índice multidimensional consegue realizar
leituras muito mais ricas do problema. É possível se descobrir não só se
determinada pessoa é pobre, mas também em qual intensidade ela é pobre, bem
como quais as privações que a tornam pobre. Uma coisa é apontar que uma pessoa
é pobre porque vive em um domicílio de renda insuficiente. Muito mais útil é
explicar que essa pessoa é pobre, porque tem saneamento precário e escolaridade
deficitária, apesar de condições habitacionais normais e um nível de saúde
aceitável. Terceiro, um índice multidimensional de pobreza pode induzir
governos que o adotam a pensarem e planejarem políticas públicas de modo
sistêmico, fomentando a coordenação e articulação entre as diversas áreas de
governo – que não são poucas –responsáveis pelo combate à pobreza.
No Brasil, diferentemente da tendência mundial,
temos usado, ao longo dos anos, índices unidimensionais de renda, nos quais uma
pessoa ou domícilio é considerado pobre ou extremamente pobre, caso não atinja
um certo patamar de renda per capita,
conhecido por linha de pobreza. Atualmente, de acordo com o Bolsa Família, as
famílias com renda por pessoa de até R$ 89,00 mensais são consideradas
extremamente pobres e as com renda por pessoa entre R$ 89,01 e R$ 178,00 são
pobres.
Os defensores dessas linhas de pobreza
monetárias podem afirmar que são elas apenas linhas administrativas que
procuram delimitar o principal programa do governo, viabilizando fiscalmente o
seu financiamento e que, por isso, não se configuram em linhas de pobreza
propriamente ditas. Acontece que essas linhas de pobreza são carregadas para os
indicadores nacionais de pobreza. Quando o governo divulga que o país, nos
últimos anos, retirou um determinado número de pessoas da pobreza, esses
valores são quase sempre em relação a essas linhas pseudo-administrativas. O
que é isso se não a influência desses valores sobre um elemento fundamental nas
políticas públicas, que é a sua avaliação por meio de seus indicadores, o que
serve para examinar o sucesso da política pública, rendendo inclusive dividendos
políticos para os governos de plantão?
O pior é a opacidade que um índice de pobreza
unidimensional via linha de pobreza monetária gera na atuação governamental,
que, ao mirar apenas na renda, pode dar menor prioridade ao conjunto de
privações que aflige a população pobre, como as de educação e saúde. Não é a
toa que o Programa Brasil Sem Miséria buscou, a partir de 2011, na égide da
medida unidimensional de pobreza, quebrar essa visão simplificada e trabalhar
explicitamente o caráter multidimensional da pobreza por meio de três pilares:
garantia de renda, acesso aos serviços públicos e inclusão produtiva. Ainda
assim, o governo federal não alterou o seu modo de estimar a pobreza para uma
forma multidimensional, o que poderia, como argumentado anteriomente, ter impulsionado
iniciativas intersetoriais de combate ao problema.
A pergunta que se faz é: por que a insistência
do governo federal pela medida unidimensional monetária, quando a tendência
mundial, seja dos organismos internacionais ou de países próximos, é pela
multidimensionalidade, que apresenta vantagens metodológicas inegáveis, e mesmo
quando o próprio governo reconhece que a pobreza é uma situação naturalmente
multidimensional em seus documentos e iniciativas?
A explicação evidente reside no apego
metodológico e no interesse político em volta da opção unidimensional.
O principal programa governamental contra a
pobreza é o Bolsa Família, que consiste, entre outras coisas, na transferência
de renda para as famílias alcançarem a linha de extrema pobreza. Por sua vez, o
indicador de pobreza fundamenta-se em quantos estão em sistuação de extrema
pobreza, ou do mesmo modo, quantos saíram da extrema pobreza. É claro que para
alcançarem valores satisfatórios desse indicador, basta o referido Programa
transferir renda suficiente para o público correto, o que o programa faz
eficientemente. Perceba que o indicador e as suas estimativas divulgadas
representam um resultado, digamos, tautológico deste programa transferidor de renda
e não, necessariamente, um impacto certo nas condições de pobreza das famílias.
É muito provável, assim como visto no relatório da Unicef, que aquelas famílias
que não apresentem mais insuficiência de renda pelo Bolsa Família possuam ainda
várias privações que esta transferência governamental não foi capaz de resolver
e que ainda estão por serem solucionadas, entre os quais os nossos péssimos
resultados educacionais e de condições de vida.
Nunca é demais advertir que não se advoga aqui
contra o Programa Bolsa Família. Ao contrário, entende-se que ele é necessário,
apesar de insuficiente. O que não se pode aceitar é o governo federal, com a
adoção de um esquema duplo de programa de transferência de renda e indicador
unidimensional monetário atrelado, querer dar um aspecto de suficiência de sua
atuação na luta contra a pobreza.
Está mais do que na hora de o Brasil avançar
para uma mensuração multidimensional, norteando inovações de políticas públicas
de pobreza com medições adequadas e não simplesmente tautológicas.
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