terça-feira, 21 de agosto de 2018

A imperiosa multidimensionalidade da pobreza

Na última semana, o Fundo das Nações Unidas para a Infância, o Unicef, publicou o seu relatório acerca da pobreza na infância e adolescência no Brasil (https://www.unicef.org/brazil/pt/resources_38766.html). O estudo mostra a importância de se escolher bem um indicador para medir grandezas tão difíceis como o é a pobreza. O organismo internacional optou por uma mensuração multidimensional da pobreza – baseada nas privações de educação, informação, trabalho infantil, moradia, água e saneamento – , em contraposição ao governo federal brasileiro, que tem insistido, há anos, em um indicador unidimensional monetário.

Segundo o relatório, mais de 18 milhões de crianças e adolescentes (34,3% do total) viviam, no ano de 2015, em domicílios com renda per capita inferior a uma cesta básica, estimada em R$ 346,00 per capita mensal na zona urbana e em R$ 269,00 na zona rural. No entanto, desses 18 milhões, 6 milhões (11,2%) possuem apenas insuficiência de renda, enquanto 12 milhões (23,1%) têm não só renda insuficiente, como também possuem um ou mais direitos negados, ou seja, uma situação de privação múltipla. Acrescenta-se a esses 12 milhões, mais de 14 milhões de crianças e adolescentes que, apesar de não serem pobres monetariamente, possuem uma ou mais privações, resultando em uma população de 27 milhões de crianças e adolescentes (49,7%), quase metade da população até 17 anos. O quadro abaixo esquematiza melhor os percentuais apontados acima.


Fonte: Relatório “Pobreza na Infância e Adolescência” do Unicef

Fácil perceber a discrepância entre a medida unidimensional monetária, baseada só na insuficiência de renda, que aponta para 34,3% da população, e a medida multidimensional, que se apoia em seis tipos de privações, que perfazem o percentual de 49,7% da população. As duas situações se interceptam apenas em 23,1% dos casos, ou seja, nos quais as crianças e adolescentes possuem renda insuficiente e privação múltipla concomitantemente.

Por mais que haja vários graus de liberdade que permitam que sejam encontradas diferentes medidas unidimensionais – há várias formas de se estabelecer o corte monetário – , bem como uma diversidade de medidas multidimensionais – a seleção das privações e os correspondentes cortes de privação são inúmeros –, os dois tipos de medidas desaguam frequentemente em resultados muito distintos e em públicos divergentes entre os considerados pobres.

Sem adentrar às escolhas metodológicas pormenorizadas do Unicef, restringimo-nos a comentar sobre a opção pela uma medição multidimensional para o público infantil e adolescente. Neste aspecto, o Unicef segue uma outra agência das Nações Unidas (ONU), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, o PNUD, que, de longa data, tem adotado, para a população em geral, um índice multidimensional de pobreza, o Global MPI (Multidimensional Poverty Index), que engloba dez indicadores distribuídos em educação, saúde e condições de vida, para estimar a pobreza nas nações em desenvolvimento.

Além desse índice multidimensional mundial de pobreza calculado em níveis nacionais por agências da ONU, há diversos países, muitos deles nossos vizinhos latino-americanos, que estão partindo para métodos de cálculo multidimensional da pobreza. A título de exemplo, o México é, de longe, o país que tem vasta experiência em medições multidimensionais. Mais próximos, a Colômbia e o Chile – para apenas citar dois outros exemplos – optaram, há alguns anos, em ter estimações multidimensionais da pobreza.

Essa decisão pela multidimensionalidade da medida de pobreza não se configura em uma simples “moda”, mas em um avanço metodológico que apresenta várias vantagens. Primeiro, um índice muldimensional de pobreza está em consonância com o maior teórico sobre o tema da nossa época, o economista Amartya Sen, que prescreve como causa da pobreza as privações de diversas liberdades que poderiam impulsionar o potencial humano. Segundo, ao se considerarem múltiplas privações, um índice multidimensional consegue realizar leituras muito mais ricas do problema. É possível se descobrir não só se determinada pessoa é pobre, mas também em qual intensidade ela é pobre, bem como quais as privações que a tornam pobre. Uma coisa é apontar que uma pessoa é pobre porque vive em um domicílio de renda insuficiente. Muito mais útil é explicar que essa pessoa é pobre, porque tem saneamento precário e escolaridade deficitária, apesar de condições habitacionais normais e um nível de saúde aceitável. Terceiro, um índice multidimensional de pobreza pode induzir governos que o adotam a pensarem e planejarem políticas públicas de modo sistêmico, fomentando a coordenação e articulação entre as diversas áreas de governo – que não são poucas –responsáveis pelo combate à pobreza.

No Brasil, diferentemente da tendência mundial, temos usado, ao longo dos anos, índices unidimensionais de renda, nos quais uma pessoa ou domícilio é considerado pobre ou extremamente pobre, caso não atinja um certo patamar de renda per capita, conhecido por linha de pobreza. Atualmente, de acordo com o Bolsa Família, as famílias com renda por pessoa de até R$ 89,00 mensais são consideradas extremamente pobres e as com renda por pessoa entre R$ 89,01 e R$ 178,00 são pobres.

Os defensores dessas linhas de pobreza monetárias podem afirmar que são elas apenas linhas administrativas que procuram delimitar o principal programa do governo, viabilizando fiscalmente o seu financiamento e que, por isso, não se configuram em linhas de pobreza propriamente ditas. Acontece que essas linhas de pobreza são carregadas para os indicadores nacionais de pobreza. Quando o governo divulga que o país, nos últimos anos, retirou um determinado número de pessoas da pobreza, esses valores são quase sempre em relação a essas linhas pseudo-administrativas. O que é isso se não a influência desses valores sobre um elemento fundamental nas políticas públicas, que é a sua avaliação por meio de seus indicadores, o que serve para examinar o sucesso da política pública, rendendo inclusive dividendos políticos para os governos de plantão?

O pior é a opacidade que um índice de pobreza unidimensional via linha de pobreza monetária gera na atuação governamental, que, ao mirar apenas na renda, pode dar menor prioridade ao conjunto de privações que aflige a população pobre, como as de educação e saúde. Não é a toa que o Programa Brasil Sem Miséria buscou, a partir de 2011, na égide da medida unidimensional de pobreza, quebrar essa visão simplificada e trabalhar explicitamente o caráter multidimensional da pobreza por meio de três pilares: garantia de renda, acesso aos serviços públicos e inclusão produtiva. Ainda assim, o governo federal não alterou o seu modo de estimar a pobreza para uma forma multidimensional, o que poderia, como argumentado anteriomente, ter impulsionado iniciativas intersetoriais de combate ao problema.

A pergunta que se faz é: por que a insistência do governo federal pela medida unidimensional monetária, quando a tendência mundial, seja dos organismos internacionais ou de países próximos, é pela multidimensionalidade, que apresenta vantagens metodológicas inegáveis, e mesmo quando o próprio governo reconhece que a pobreza é uma situação naturalmente multidimensional em seus documentos e iniciativas?

A explicação evidente reside no apego metodológico e no interesse político em volta da opção unidimensional.

O principal programa governamental contra a pobreza é o Bolsa Família, que consiste, entre outras coisas, na transferência de renda para as famílias alcançarem a linha de extrema pobreza. Por sua vez, o indicador de pobreza fundamenta-se em quantos estão em sistuação de extrema pobreza, ou do mesmo modo, quantos saíram da extrema pobreza. É claro que para alcançarem valores satisfatórios desse indicador, basta o referido Programa transferir renda suficiente para o público correto, o que o programa faz eficientemente. Perceba que o indicador e as suas estimativas divulgadas representam um resultado, digamos, tautológico deste programa transferidor de renda e não, necessariamente, um impacto certo nas condições de pobreza das famílias. É muito provável, assim como visto no relatório da Unicef, que aquelas famílias que não apresentem mais insuficiência de renda pelo Bolsa Família possuam ainda várias privações que esta transferência governamental não foi capaz de resolver e que ainda estão por serem solucionadas, entre os quais os nossos péssimos resultados educacionais e de condições de vida.

Nunca é demais advertir que não se advoga aqui contra o Programa Bolsa Família. Ao contrário, entende-se que ele é necessário, apesar de insuficiente. O que não se pode aceitar é o governo federal, com a adoção de um esquema duplo de programa de transferência de renda e indicador unidimensional monetário atrelado, querer dar um aspecto de suficiência de sua atuação na luta contra a pobreza.

Está mais do que na hora de o Brasil avançar para uma mensuração multidimensional, norteando inovações de políticas públicas de pobreza com medições adequadas e não simplesmente tautológicas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário