segunda-feira, 14 de maio de 2018

A limitação da caridade


A ajuda aos pobres pode ser motivada por várias razões.

Nos primórdios, o alívio da pobreza era feito somente via caridade, movida por aspectos morais no nível individual. Destacam-se, secularmente, diversas organizações religiosas e entidades voluntárias (veja sobre os primórdios das ações contra pobreza). Com o tempo, a sociedade como um todo passou a entender que a questão da pobreza não deveria se restringir aos trabalhos voluntários e entidades filantrópicas. Uma nova forma de Estado emergiu, o Estado do bem-estar social, evoluído das transformações sociais, políticas e econômicas ocorridas com a entrada da Idade Contemporânea. Inicialmente, a atuação estatal passou a ser justificada com base nas teorias contratualistas que trouxeram os direitos e liberdades individuais do homem, para depois se apoiar em outras teorias, como o utilitarismo e as teorias de falhas de mercado.

O auxílio aos pobres por meio da caridade dos indivíduos possui a virtude de ser movida por razões morais, mas isso certamente não se traduz em efetividade na luta contra a pobreza. Ravallion (2016) argumenta que a caridade fomentaria a mendicância, o que geraria efeitos perversos nessa população carente. Continua ele destacando que “o ato de dar responde mais a circunstâncias dos indivíduos específicos que os doadores conhecem pessoalmente do que as necessidades da massa de anônimos não identificados, mas pessoas igualmente carentes, especialmente aqueles distantes”. Essa rationale faria parte da psicologia da caridade. Dessa forma, a caridade proporcionaria “uma cobertura desigual para aqueles necessitados”.

Por mais meritória que seja a caridade do ponto de vista moral dos indivíduos que a praticam, ela possui limitações de implementação, quando se pensa no conjunto inteiro da sociedade.

Outra razão para a inefetividade da caridade, em termos de cobertura insuficiente, é o fato de essa atividade se assemelhar às características que são típicas de serviço público. Mesmo pela economia clássica, nem tudo pode ser fornecido a contento pelo mercado, ficando para o governo algumas responsabilidades. Um exemplo conhecido é o da provisão de iluminação pública, tão importante para o urbanismo, para a circulação dos cidadãos e para a redução dos riscos de violência. Caso a iluminação pública fosse paga por alguns cidadãos, não se poderia afastar dos não pagantes os benefícios do uso dela, situação esta denominada pelos economistas de não exclusividade. Também, cada cidadão que consome o serviço de iluminação pública não reduz o consumo dos demais cidadãos, fato este chamado de não rivalidade. Quando um bem ou serviço com as características acima é fornecido por particulares, abre a oportunidade de que alguns se beneficiem sem pagar, o que é conhecido como o problema do carona, uma das falhas de mercado conhecidas na literatura econômica. Esse fenômeno acarreta uma oferta desse serviço menor do que a ideal para a sociedade.

Similarmente à iluminação elétrica, ações ou serviços particulares que enfrentem a pobreza também impactam o bem-estar geral da sociedade de modo que cidadãos caronas podem se beneficiar sem ônus, pois estes não precisam pagar para usufruir desses benefícios, nem são prejudicados pelo consumo dos demais pelo serviço. Portanto, o enfrentamento da pobreza é provido abaixo da quantidade necessária. Essa situação de falha de mercado justifica a atuação governamental por meio de políticas públicas que reduzam a pobreza.

No entanto, essa compreensão de que essa iniciativa cabe predominantemente ao Estado não afasta a atuação complementar da sociedade. Essa atuação conjunta e o que cabe a cada ente ainda são objeto de intensos debates nas sociedades modernas. Nos Estados Unidos, por exemplo, os democratas entendem que o Estado e as entidades de caridade, tais quais igrejas, são complementares nessa missão, enquanto que os republicanos, ao se oporem ao aumento do Estado, defendem que nada há de melhor do que as comunidades locais para tratar de modo mais eficiente o problema. Essa composição entre Estado e sociedade varia de país para país quase sempre ao sabor das ideologias. Mas, não há mais como o Estado se abster desse papel e entender de modo contrário representaria um retrocesso histórico.

Os argumentos traçados acima para a atuação obrigatória do Estado na luta contra a pobreza são de ordem microeconômica. Além disso, há outras razões históricas para a participação do Estado. Vimos em post anterior (veja como o Iluminismo afetou a pobreza) que Estado do bem-estar social emergiu em fins do século XVIII, incorporando princípios de solidariedade nos códigos europeus, dotando os indivíduos titulares de direitos e liberdades. Por fim, teoricamente, o utilitarismo veio reforçar a importância de se considerar o total dos indivíduos tendo em vista aumentar o bem-estar global da sociedade. Trataremos da escola utilitarista no próximo post. acerca da continuação do pensamento sobre a pobreza ao longo do século XIX.

Bibliografia: Ravallion, M. The Economics of Poverty. Oxford University Press, 2016.

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