Há uma ideia que
tem se disseminado equivocadamente, até entre bons psicólogos e economistas, e que,
ao nosso ver, precisa ser desmistificada. É a concepção de que dinheiro para quem
já é muito rico tem muito menos valor do que para um pobre. Nesse sentido, existiria
um teto de bem-estar que, uma vez atingido, mais dinheiro deixaria de importar,
pois não elevaria mais o bem-estar. Com isso, o dinheiro perderia o seu valor
subjetivo para os ricos.
É certo que o aumento
de renda tenha o poder de aumentar bastante o bem-estar dos mais pobres. Mas,
alguns acreditam que, à medida que a renda aumente, ela influencie cada vez
menos o bem-estar. Por isso, haveria um valor teto de bem-estar, a partir do
qual acréscimos de renda não surtiriam grandes efeitos no aumento desse
bem-estar. Essa ideia é facilmente intuída, uma vez que, por exemplo, das
nossas experiências cotidianas, 10 reais a mais no bolso de um pobre têm muito
mais valor do que os mesmos 10 reais a mais na conta milionária de um rico. Mas
essa percepção é mais complicada do que parece. Afinal de contas, o inferno
está cheio não só de boas intenções, mas também de intuições falhas. Esse post
pretende desconstruir esse senso comum.
A maioria dos artigos,
entre blogs, colunistas e textos de economistas respeitados, que propagam essa concepção
de taxas decrescentes de aumento de bem-estar fazem rápida analogia ao clássico
princípio econômico da lei dos rendimentos decrescentes. Além disso, os textos fazem
usualmente referência a um importante estudo a ser explicado adiante. Mas o distorcem
ou aproveitam apenas as conclusões que lhes convêm.
Dois laureados
pelo Nobel, Angus Deaton e Daniel Kahneman, este último que revelou a
importância da inteligência emocional humana, juntaram-se em 2010 para escrever
um artigo acerca do efeito da renda sobre dois aspectos de bem-estar comumente
confundidos (https://www.princeton.edu/~deaton/downloads/deaton_kahneman_high_income_improves_evaluation_August2010.pdf
).
A afirmação ou
indagação de “dinheiro compra ou não felicidade” estimulou os pesquisadores a estudar
o impacto da renda sobre a felicidade humana. Segundo os pesquisadores, a
felicidade refere-se ao bem-estar emocional, também chamada de bem-estar
hedonista ou felicidade experimentada, relacionando-se à “frequência e
intensidade de experiências de alegria, fascinação, ansiedade, tristeza, raiva
e afeição que fazem a vida de cada um agradável ou desagradável”. Trabalhando
com dados de 450.000 respondentes americanos coletados pela renomada
organização de pesquisa Gallup, os economistas encontraram que o teto de
felicidade é atingido em torno de 75 mil dólares ao ano, significando que um
americano ganhando, por exemplo, 150 mil dólares seria tão feliz quanto um americano
recebendo os 75 mil. Dada essa interessante conclusão, é inevitável que algumas
questões saltem à mente. Por que os milionários buscam ficar cada vez mais
ricos, se não lhes apraz mais riqueza em razão de terem já alcançado o teto de
felicidade? Indo além, não seria desejável para economias como todo que políticas
públicas reduzissem os ganhos dos mais ricos para redistribuir para os mais
pobres, já que os muitos ricos seriam indiferentes às perdas?
Todavia, o
estudo também se debruça sobre a influência que o dinheiro tem sobre outra modalidade
de bem-estar, que é a satisfação com a vida, ignorada pelos textos que
enaltecem o teto de felicidade. Esse aspecto de bem-estar reflete pensamentos
sobre a vida e uma avaliação equilibrada de longo prazo das conquistas
alcançadas ou a serem alcançadas. Diferente da medida de felicidade, sujeita ao
lado emocional, a satisfação com a vida é uma medida racional menos suscetível a
ruídos sentimentais de curto prazo. Para essa medida, é usada uma escala de 0
(pior vida possível) a 10 (a melhor vida possível), chamada de Escala
auto-ancorada de Cantrill. Neste caso, ao contrário da felicidade humana, as
conclusões não apontam para um teto de satisfação com a vida quando se têm
renda suficientemente altas.
Didaticamente, Angus
Deaton, em seu livro “A Grande Saída”, confirma as conclusões do artigo
anterior em parceria com Daniel Kahneman, porém desta vez trabalhando com PIB per capita de países. O PIB ou renda per capita, uma medida de bem-estar
material, é cruzada com valores médios de satisfação com a vida, esta mensurada
pela escala de Cantrill já explicada.
Fonte: DEATON, Angus. A
grande saída. p. 29
O primeiro
gráfico acima mostra um posicionamento aproximado dos países sobre uma curva
côncava (a marcação da curva em vermelho é nossa), em que a renda, à medida que
se eleva, tem efeito cada vez menor sobre a satisfação com a vida dos
indivíduos. Percebam que, para países como a Índia e a China que estão no
trecho mais vertical da curva, o aumento de renda é ainda importante para a
melhora da satisfação com a vida. Entretanto, a partir da renda do Brasil e México,
em torno de 10 mil dólares per capita
ao ano, a curva deixa de ser ascendente e se estabiliza no patamar aproximado
de satisfação de vida de 7, implicando que a renda passa a ter, a partir desse
ponto, efeito apenas marginal sobre a satisfação com a vida. Como exemplo, para
países como EUA e Noruega, mais renda alteraria muito pouco a satisfação de vida,
que continuaria em torno de 7. Um observador incauto, portanto, poderia
concluir que um país, uma vez tenha atendido as suas necessidades básicas, tais
quais os últimos países citados, mais dinheiro não traria maior satisfação com
a vida ou, analogamente, no nível individual, dinheiro adicional não importa
para quem já é rico. Mas isso não é verdadeiro.
Como é bem alertado
pelo próprio economista, alguns cuidados importantes precisam ser tomados nesse
tipo de comparação. Quando se mede a satisfação com a vida em função de renda,
as pessoas não raciocinam com o dinheiro em termos absolutos, mas em termos
relativos, ou seja, o que importa é o percentual de reajuste do salário. Assim,
uma pessoa de renda de R$ 1.000 com reajuste de R$ 100 terá mais satisfação do
que outra que ganhe R$ 10.000 e tenha reajuste de R$ 500, pois, enquanto este
teve o reajuste de somente 5%, aquele teve de 10%. Portanto, o eixo horizontal
das rendas no gráfico anterior precisa representar aumentos percentuais, não
acréscimos absolutos de renda. Isso pode ser feito, por exemplo, como no
gráfico abaixo, distanciando as rendas em multiplicações por quatro: 250,
1.000, 4.000, 16.000 e 64.000.
Fonte: DEATON, Angus. A
grande saída. p. 32
O segundo
gráfico de Angus Deaton mostra o Zimbábue e a República Democrática do Congo com
uma renda per capita em torno de 250 dólares, a base de renda para o gráfico.
Bangladesh e Togo alcançam 4 vezes a renda dos anteriores, ou seja, de 1.000
dólares. O próximo grupo de 4.000 dólares de renda per capita contam com Índia e China, que têm renda 16 vezes maior
do que a base. México e Brasil têm renda per capita cerca de 16.000 dólares (64
vezes maior à base), enquanto que os países mais ricos, como os EUA, de 64.000
dólares (256 vezes maior). Esse tipo de gráfico em que os espaços iguais na
escala representam medidas multiplicadas é chamado de gráfico em escala logarítmica,
que possibilita, agora sim, estudar mudanças percentuais de renda e verificar o
impacto delas na qualidade de vida.
Nessa nova
configuração gráfica, perceba que a curva côncava inicial deixou de existir e
se transformou aproximadamente em uma reta (novamente marcação nossa), desaparecendo
o trecho achatado superior em que ficavam os países ricos. Esse comportamento
quase linear significa que alterações percentuais na renda provocam sim
alterações na satisfação com a vida, mesmo entre os mais ricos. Em outras
palavras, mesmo para quem é rico, aumentos percentuais de renda trazem
satisfação com a vida na mesma medida que entre os mais pobres. Essa conclusão
alcançada com estudo entre rendas per
capita de países coincide com a advinda do estudo anterior em coautoria com
Daniel Kahneman, em que se consideram as rendas individuais nos EUA.
Esse resultado
tem consequências contrárias à crença do teto de felicidade ou bem-estar
falsamente alardeada. A verdade é que os ricos não são indiferentes à renda nem
estão dispostos a dispender valores vultosos necessários para melhorar a
situação de uma grande massa de pobres. Pior ainda! Para uma pessoa rica, só
lhe trazem satisfação somas cada vez mais elevadas e condizentes com o seu alto
padrão de renda – quanto mais se tem, mais se quer. Assim, economias altamente
liberais em que a estrutura de redistribuição é ainda precária podem
testemunhar aumentos significativos de desigualdade, resultado da busca
exponencial de lucros pelos mais ricos. Logo, políticas públicas
redistributivas precisam ser criadas para estancar essa assimetria econômica
entre ricos e pobres. Mas, diferente dos que creem no teto de felicidade,
políticas redistributivas quase sempre tendem a ser implementadas em cenários
de conflito de interesses econômicos. O Estado é o grande leviatã.
Não precisaria
ir longe para descobrir a importância generalizada do dinheiro para os
indivíduos, dos mais pobres aos mais ricos. O humorista e cantor brega cearense
Marcondes Falcão Maia já entoava, por meio de uma letra simples da sua música “O
dinheiro não é tudo, mas é 100%”, sabedoria popular similar à econômica de seu tempo.
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