sexta-feira, 9 de outubro de 2020

A fome em tudo

Em se tratando de pobreza, não há fator mais provável de saltar aos olhos  do que o da privação de alimentos. Comumente a fome é vista como causa e consequência da pobreza, ou seja, como sinônimas. Não à toa linhas de pobreza muitas vezes são definidas com base em orçamentos mínimos para aquisição de uma cesta de alimentos de subsistência. Outrossim, este entrelaçamento entre pobreza e fome é uma visão compartilhada pelas Nações Unidas, que nos seus Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (número 2) incluiu metas de redução conjunta de pobreza e de fome. Segundo esse organismo internacional, no último ano, a fome atingia ainda 820 milhões de pessoas no planeta (ONU News).

Recentemente, o Programa Mundial de Alimentos, agência das Nações Unidas para combate à fome, ganhou o Nobel da Paz de 2020, por “seus esforços de combate à fome, por sua contribuição para melhorar as condições para a paz em áreas atingidas por conflitos e por agir como força-motriz dos esforços para prevenir a fome como uso de arma de guerra e conflito” (Nobel da Paz 2020). Domesticamente, tem se afirmado que o Brasil, que havia deixado o Mapa da Fome em 2014, corre risco de voltar a essa classificação em razão do aumento da extrema pobreza trazida com a pandemia (Brasil no Mapa da Fome).

A despeito da importância do problema nos dias atuais, a indagação que se lança é se a fome realmente possui hodiernamente esse impacto na pobreza da população mundial, defendido comumente. No jargão acadêmico, a pergunta seria se a fome, ou má nutrição, configura-se em uma armadilha que mantém as pessoas na pobreza? Na linguagem popular, armadilha é uma situação em que não se pode sair com os recursos próprios à disposição. Em economia, o significado é similar e, no presente caso, encontra o sentido de que a pessoa em situação de pobreza, por ser pobre, não come o suficiente e, em não comendo, não consegue ser produtivo, o que a impede de ganhar um salário maior e, assim, permanecendo pobre.


Em seu livro Economia da Pobreza (2012) , os laureados pelo Nobel em 2019, o casal economista, o indiano Abhijit Banerjee e a francesa-estadunidense Esther Duflo, defende que atualmente a maioria das pessoas no mundo não estão mais dentro de uma zona de armadilha de pobreza como no passado. À exceção de desastres naturais e conflitos humanos como guerras, todos podem, mesmo os mais pobres, comer o suficiente para realizar um trabalho produtivo e escaparem da pobreza. O livro foi escrito antes da atual crise de saúde da Covid-19 e, certamente, ela se enquadraria na classe dos desastres naturais excepcionalizados pelos autores. Portanto, o que segue são análises realizadas pertencentes a situações de normalidade diferentes de guerras ou crises pandêmicas.

O tema é importante para desmistificar certezas de senso comum no combate à pobreza e as consequentes elaborações de políticas públicas, no sentido de que a debelação da fome deve ser algo priorizado. É conhecido que programas de distribuição de alimentos, tais como a doação de cestas básicas ou a implementação de restaurantes comunitários, geralmente podem distorcer preços de mercado, redundam em ineficiências (em comparação à transferência de dinheiro) e envolvem uma logística muito complicada, principalmente em grandes territórios e com a diversidade cultural alimentar decorrente. Devemos trazer à memória o fracasso do Programa Fome Zero em 2003, que foi substituído pelo Programa Bolsa Família. Seria ainda válida essa estratégia para combater à pobreza nos dias atuais, considerando que recursos devem ser bem aplicados, tendo em vista as muitas alternativas?

Corajosamente, os dois economistas colocam em xeque o fato de ainda existir fome para cerca de um bilhão de pessoas e constroem uma argumentação sólida no sentido oposto, trazendo teoria e exemplos em países como Índia, China e outros países asiáticos e africanos.

O primeiro pressuposto que é logo derrubado pelos estudiosos é o de que a pessoa em situação de pobreza decide comer o quanto é possível, dado os recursos que lhe estão disponíveis, suposição esta que se fosse verdade, indicaria a necessidade de um esforço para vencer a armadilha de pobreza. No entanto, desvelam que mesmo as pessoas em situação de extrema pobreza não têm investido todos seus recursos em comida. E esse comportamento não tem sido devido à necessidade de gasto em outros itens inevitáveis, tais como moradia, roupas ou remédios, mas em despesas supérfluas como álcool, cigarro e até festas.

Na base de dados com 18 países pobres trabalhada pelos estudiosos, alimentação correspondia de 45 a 77% do consumo entre os extremamente pobres. Além disso, mesmo entre os mais necessitados, cada dinheiro extra auferido não se convertia todo em gastos com comida. Por exemplo, no estado de Maharashtra na Índia, mesmo entre um público mais pobre, cada 1% de aumento das despesas gerais implicava apenas 0,67% de aumento de gastos em comida.

No Brasil, consultando a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2018, nas famílias com renda familiar per capita de até dois salários mínimos, o gasto médio com alimentação é de 22%, ao passo que é de 0,5% com pacote de TV, internet e telefone; de 1,7% com recreação e cultura; de 0,7% com fumo; de 1% com serviços pessoais de beleza; e de 1,5% com despesas diversas, como jogos, apostas, cerimônias e festas.

Ainda segundo os autores, ainda que se gastem os recursos a mais com alimentação, as decisões das pessoas mais pobres não têm recaído sobre opções de alimentação mais calóricas e nutricionais, pois, ao contrário, o que tem movido essas decisões é o paladar. Ou seja, em função do paladar, elas têm optado por alimentos mais caros, mas que proporcionam menor ingestão de calorias. Na China, essa preferência por calorias não seria prioridade entre os domicílios urbanos, mas sim a obtenção de alimentos mais apetitosos e de maior custo por caloria.

Essa situação não é surpreendente ao se verificar o caso do Brasil. Basta se observar, nesses rincões do Brasil, o que acontece quando um beneficiário do Bolsa Família faz nas redondezas de uma agência em que efetuou o saque do benefício. Toda sorte de comidas de baixo conteúdo calórico e nutricional são compradas de imediato antes mesmo de se cruzar a rua: balinhas, algodão doce, biscoito, etc. O pobre tem escolhido a comida não pelo preço ou valor nutricional, mas pelo sabor. O desejo de satisfação rápida inibe o processo decisório racional sobre o melhor uso do recurso financeiro. E as compras por impulso ganham espaço e se efetivam, podendo impactar na aquisição de outros itens que poderiam ser de maior necessidade para aquela família.

Um outro exemplo trazido pelos autores é o puzzle da Índia, cuja população tem apresentado obesidade e diabetes crescentes, não obstante a queda de consumo de calorias per capita. Mais de três quartos da população daquele país viveria em domicílios com consumo diário per capita de calorias menor do que 2.100 calorias nas áreas urbanas e 2.400 nas áreas rurais, valores estes parâmetros mínimos requeridos. Inclusive, para qualquer faixa de renda, inclusive as mais pobres, a proporção do orçamento dedicado à alimentação tem caído no país.

No Brasil, o fenômeno da obesidade também ocorre entre os mais pobres e surpreende o senso comum e causa controvérsias políticas. É conhecido o episódio em que Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, por meio da POF 2002-2003, identificou que 40,6% dos brasileiros estavam obesos e que a pobreza no Brasil não se manifestava mais pela fome, resultado que foi desacreditado pelo Presidente da República à época (IBGE contesta declarações do presidente sobre a fome).

Dando continuidade à sua análise, os autores admitem também o pressuposto da racionalidade de que a pessoa em situação de pobreza sabe o que faz, ou seja, se quisesse ser produtivo e aumentar seus ganhos para assim comer mais, ele o faria. Mas como isso explicaria a queda de consumo calórico citado anteriormente? Uma hipótese investigada por eles poderia ser o fato de que comer mais nos dias de hoje não mais proporcionaria ganhos de produtividade e assim não haveria armadilha de pobreza calcada na fome.

Atualmente, a maioria das pessoas possuiriam o suficiente para comer. Graças a séculos de avanços na agricultura e de intercâmbio de alimentos entre os continentes, a disponibilidade de comida é capaz de alimentar cada um no planeta. Segundo os autores, em 1996, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) afirmou que a quantidade de comida seria suficiente para prover uma dieta adequada de 2.700 calorias diárias por pessoa. Portanto, se existisse fome ainda seria ela creditada à reconhecida má distribuição da comida. Não obstante, os autores defendem que absoluta ausência não existiria e, mesmo as pessoas mais pobres ganhariam o suficiente para uma dieta necessária, pois as calorias têm-se barateado historicamente, exceto em situações extremas de desastres naturais ou conflitos. Então, disponibilidade e preço não têm sido obstáculos na maior parte dos lugares.

Todavia, insistindo: por que as pessoas estariam comendo menos, se não há problema de acesso à comida? A resposta dada pelos autores é de que as pessoas estão ingerindo menos calorias, talvez porque tenham menos fome. Melhoramentos nos sistemas de tratamento da água e saneamento têm levado a menor perda de nutrientes devido a menos casos de diarreia e outras indisposições de saúde. Outra razão é o declínio de trabalho pesado braçal, que exigiam no passado mais calorias. Se os trabalhadores estão nesse ponto de saciedade, seria normal que passassem a consumir menos comida. Devemos também considerar que os ganhos marginais de produtividade por ingestão de caloria são maiores no início, mas vão diminuindo à medida que se aproxime da saciedade. Tudo levaria a crer que, nos tempos atuais, não há armadilha de pobreza causada estritamente pela fome.

Segundo os autores, não havendo mais fome extrema, em vários lugares do globo as pessoas em situação de pobreza passaram a valorizar outros confortos como os de ter antena parabólica, televisão, aparelhos de DVD, celular, bem como gastos com festividades, tais como casamentos, batismos e até sepultamentos ostentosos, para o nível de renda dessas pessoas. Eles não identificaram irracionalidade nas decisões dessa população, pois muitas vezes, não agem por impulso, mas economizam por muito tempo para aquisição ou custeio desses pequenos luxos. No caso brasileiro, pululam pelos telhados das casas precárias de pau a pique antenas parabólicas, que mostram que esse comportamento também se reproduz no país.

No entanto, todo este entendimento traçado até agora cabe ressalvas. Os autores perguntam se se deve assumir que os pobres comem tanto quanto precisam, apesar de estarem comendo pouco. Em certas situações, a armadilha de pobreza devido à má alimentação ainda procede. Tem sido amplamente comprovado por diversos estudos que a alimentação deficiente das crianças, desde o útero à primeira infância, costuma afetar todo o seu desenvolvimento cognitivo pelo resto da vida. Então, continuam cruciais os programas de nutrição na gestação e na infância.

Logo, concluem os autores que atualmente, em cenários de normalidade, a maior parte da população mundial, mesmo os mais pobres, não vive mais em uma zona de armadilha de pobreza devido à fome, pois conseguem comer, bem ou mal, o suficiente para que sejam produtivos. Pode haver, entretanto, outras armadinhas de pobreza que não a de falta de acesso à alimentação. Um problema parece ser não a quantidade de comida, mas a qualidade dela, quando se avaliam as deficiências nutricionais encontradas agora em larga escala. Finalmente, assentam que a armadilha de pobreza causada pela fome continua fazendo sentido, porém foi ela mais importante no passado e ainda pode ser determinante em situações de calamidade. Citam Amartya Sen, para quem, apesar da falta de comida não deixar ainda de ser um problema mundial, o mundo tornou-se muito abundante para ser a fome o principal deles.

Por fim, parafraseando uma famosa canção brasileira de rock, as pessoas, seja qual for a situação, não querem só comida, mas também diversão, arte, bebida, balé e saída para qualquer parte. A comida é importante, mas não é tudo.

Referência:

Banerjee, Abhijit; Duflo, Esther. Poor Economics: a radical rethinking of the way to fight global poverty. PublicAffairs, 2020.


terça-feira, 29 de setembro de 2020

Um Robin Hood descalibrado

Buscando um substituto para o Auxílio Emergencial, a equipe econômica do governo tem elaborado soluções para um novo programa de transferência de renda que tenha não só valor mais robusto do que o do atual Bolsa Família, como também contemple um número maior de pessoas. A ideia é atender as pessoas oriundas da fila do Bolsa família, já existentes antes da pandemia, e do novo contingente de informais que têm padecido com o mercado de trabalho desaquecido.

Entretanto, as alternativas de fontes de custeio necessárias para a  criação desse programa, tais como o fim do abono salarial, da farmácia popular e do seguro defeso, ou a desvinculação do salário mínimo de aposentadorias e pensões, ou mesmo o congelamento de salários dos servidores públicos, têm desagradado o Presidente da República, que defendeu não poder “tirar dos pobres para dar aos paupérrimos” e até desautorizou os técnicos a seguirem no desenho do novo programa.

Sim! Desvelaram-se os pobres, aqueles que são menos pobres do que os paupérrimos, mas ainda assim passam por privações. Esses pobres podem ser identificados naquela faixa da população que oscila entre a pouca permanência em empregos de carteira assinada, a contumácia em empregos precários e a necessidade crônica de transferências de renda ou qualquer outra ajuda do Estado.

Entender quem são pobres ou paupérrimos envolve conhecer adequadamente a distribuição de renda brasileira. Isso é fundamental para bem posicionar os programas sobre os quais tem sido sugerida a extinção para liberação de recursos ao novo programa de renda.  Restringindo-se à análise técnica, o objetivo seria fortalecer o Bolsa Família, que é reconhecido nacional e internacionalmente como um programa bem focalizado nas camadas mais pobres. Porém, o valor reduzido dos benefícios, enquanto contribui para essa focalização, devido aos valores atraírem principalmente os que necessitam dele, mostra-se insuficiente para um combate mais amplo ao problema da pobreza, sobretudo no cenário pós-pandemia que advirá.

A desigualdade de renda no Brasil é uma das maiores do mundo e gera perversas distorções e ilusões nas políticas públicas. A magnitude dessa desigualdade é tamanha que há de se ter cuidado na interpretação de curvas e indicadores a respeito. Como “o diabo esconde-se nos detalhes”, um leigo pode ser facilmente enganado inclusive por estudos e relatórios dos mais sérios e renomados.

A primeira implicação dessa distorcida distribuição de renda é o fato de que não basta analisar apenas os decis de renda para avaliar se uma determinada política social está bem focalizada nas camadas mais pobres. À título de exemplo, pergunta-se o que se pode concluir da afirmação de que um determinado programa atende os 30% mais ricos da população brasileira? Muitos se precipitariam a achar que esse programa atende apenas os mais ricos da população, sendo esta portanto uma indesejada intervenção estatal.

Da Pnad 2019, pode-se verificar que o sétimo decil de renda per capita familiar, considerando os rendimentos de todas as fontes, é de R$ 1.333,33. Em outras palavras, os 30% mais ricos auferem uma renda per capita familiar mensal igual ou acima de R$ 1.333,33. Portanto, entre os 30%, há famílias que ganham tão pouco quanto R$ 1.333,33 por membro, quanto famílias muito ricas e milionárias com rendimentos per capita dezenas de vezes maior. A distribuição de renda acentuada faz com que faixas de renda acima de certo valor abranjam um grupo muito heterogêneo, levando comumente a erros de leitura de indicadores sociais tal como o apresentado.

E é comum se deparar com estudos que utilizam desse expediente para convencer que algumas políticas são mal focalizadas por atender uma parcela superior de renda da população, mas que na verdade ainda contém beneficiários não ricos, melhor dizendo, pobres mesmo. Encomendado pelo governo brasileiro há alguns anos, o relatório do Banco Mundial “Um Ajuste Justo” é um exemplo dessa lógica de identificar programas regressivos, como o abono salarial, que devem ser substituídos por aqueles mais progressivos, tal qual o salário-família (vide publicação anterior). Coincidentemente, no momento atual a equipe econômica, com o objetivo de injetar recursos no novo programa de renda substituto do Bolsa Família, cogitou suprimir o abono salarial, benefício de no máximo um salário mínimo pago a trabalhadores que tenham recebido até o limite de 2 salários mínimos de remuneração média mensal.

Quanto a isso, lembremos que o limite superior de 2 salários mínimos, condição para a percepção do abono salarial, soma atualmente a R$ 2.090,00, que, considerando o tamanho médio da família média brasileira de 3 pessoas, corresponde a cerca de R$ 700,00 per capita mensal, valor este que faria os indivíduos dessa família estarem, segundo a Pnad anual de 2019, entre os 60% mais ricos do país, ou seja, não muito longe da metade superior da distribuição de renda. Acrescentando-se ainda assim um abono máximo de R$ 1045,00 ao salário, no mês de recebimento do benefício, a renda per capita dessa família modelo subiria para R$ 1.045,00, o que a colocaria entre as 40% mais ricas do país (PNAD). Clara fica a contradição entre a informação sobre classificação de riqueza e a real capacidade de compra, precária, desse grupo de famílias.

Isso ocorre porque, com cerca R$ 700,00 de renda per capita mensal, um brasileiro pode ser considerado entre os 60% mais ricos relativamente à distribuição de renda tão desigual, mas é em termos absolutos, pelo contrário, um cidadão ainda com privações de consumo e, por que não dizer, uma pessoa em situação de pobreza. É salutar saber que o Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese) calcula que para 2020 o salário mínimo necessário para sustentar uma família de 4 pessoas deveria ser de R$ 4.366,51 ( Salário minimo segundo o Dieese ), ou seja, cerca de R$ 1.100,00 per capita, valor este bem superior, por exemplo, aos R$ 700,00 per capita do abono salarial, programa cogitado de ser suprimido pelo governo.

Portanto, a divergência surgida entre o Presidente da República e a sua equipe econômica reside no fato de que o primeiro interpretou em termos absolutos a focalização de programas em discussão, enquanto a sua equipe raciocinou em termos relativos. No caso dos técnicos, seria válido retirar recursos para um novo programa de renda para os pobres, inclusive, dos um pouco menos pobres. Essa tem sido a tônica das interpretações econômicas, seja por organismos internacionais financeiros seja por governos alinhados com essa lógica.

Convenientemente, reformas de sistemas de proteção social nessa linha de pensamento econômico dominante podem proporcionar uma queda na desigualdade de renda por alguns indicadores, entre eles, o Coeficiente de Gini. Mas essa prescrição esconde que os referidos indicadores seriam ainda muito melhores, caso os recursos fossem subtraídos de camadas bem mais ricas do que as que tem sido objeto de análise. Uma das funções clássicas governamentais é a de redistribuição de renda dos mais ricos para os mais pobres. Neste papel, o governo brasileiro tem demonstrado ser um Robin Hood portando uma aljava de flechas muito ruins de pontaria.


Em suma, foi necessária uma visão política, minimamente mais sensível que a puramente econômica, para estender as condições de pobreza para uma camada de pessoas que, não obstante dotada de rendimentos, passam por privações de consumo e limitações no seu desenvolvimento humano. Eis que essa discussão acabou por trazer a concepção de que a pobreza deve alcançar uma camada populacional localizada para além das linhas de pobreza consagradas antes da pandemia.

domingo, 16 de agosto de 2020

A desigualdade, segundo o motoboy

Foi execrável o comportamento de um cliente com um motoboy entregador de aplicativo que lhe prestava um serviço na grande São Paulo (https://www.youtube.com/watch?v=Rz8hQbdTN9Y). A gravação se espalhou e ganhou notoriedade em tempos de redes sociais.


Eis o excerto que queremos lançar luz, em que o motoboy retrucou a arrogância do cliente relativa às suas posses:

- O Senhor conseguiu por quê? Por que o seu pai te deu ou por que você trabalhou?

- Eu já nasci rico – respondeu o cliente.

Deixando de lado os execráveis comentários racistas no resto do vídeo, a situação que se procura focar aqui neste texto expõe dois tipos de desigualdade que é despercebida por muitos: a de oportunidade e de resultado.

Havendo igualdade de oportunidade, a todo cidadão seria dada uma estrutura socioeconômica adequada para um suficiente desenvolvimento humano de suas aptidões. A desigualdade de oportunidade é combatida, quando se disponibiliza a todos boa educação formal, acesso fácil à saúde, garantia de uma segurança alimentar e nutricional, participação no mercado de trabalho e geração de renda, acesso barato à cultura, entre outros.

Mesmo que um sistema proporcione uma ótima igualdade de oportunidade, as pessoas alcançarão resultados diversos, haja vista que cada um possui liberdade de escolha do nível de esforço a ser empregado em sua trajetória de vida. Assim, há por exemplo os que preferem mais o trabalho e o estudo ao lazer, aumentando a probabilidade de alcançarem maiores resultados, se o sucesso for mensurado pela renda e pelo patrimônio. Acontece com frequência de irmãos, que possuem as mesmas condições de desenvolvimento, tenham resultados díspares nas suas carreiras profissionais e vidas pessoais. Assim, ocorre uma natural desigualdade de resultado em função da diversidade de escolhas entre as pessoas.

Portanto, dada essa separação conceitual de desigualdades, é bem mais defensável, mesmo no espectro conservador político, a luta contra a desigualdade de oportunidade, não importando, porém, a desigualdade de resultado. Afinal de contas, até o mundo selvagem rousseauniano, tido pelo grande pensador como uma sociedade inerentemente igualitária, tenderia ainda assim a uma diferenciação por diferenças inatas, como saúde, força, habilidade mental. Mas ele mesmo complementaria  que as instituições humanas existentes tratariam de piorar esse quadro de desigualdade. Parece consensual, senão para os mais radicais dos conservadores, que as regras do jogo devem ser iguais para todos e que cada um aproveite como desejar as suas chances. Isso remete a adoção de instituições, tais como educação e saúde, que resolvam a disparidade de oportunidade no seio da sociedade, não consistindo em preocupação o resultado final das escolhas das pessoas.

Mas as coisas não são tão simples como parecem e o diálogo do motoboy escancara essa situação. As desigualdades de oportunidade e de resultado não são dois fenômenos incomunicáveis. É fácil de ver que o primeiro tipo de desigualdade leva ao segundo. Mas o inverso também acontece e isso o motoboy, na sua sabedoria rotineira, expôs aos que assistiram ao vídeo.

A desigualdade de resultado pode levar e leva comumente a uma desigualdade de oportunidade na transmissão das riquezas de uma geração para a outra. Filhos de pais ricos e pobres têm a tendência de permanecerem na mesma situação socioeconômica dos pais. As parcelas de faixas de renda mais altas nas sociedades concentram as rendas de patrimônio, como aluguéis, aplicações financeiras, muitas delas resultantes de heranças recebidas de familiares e a serem repassadas a seus descendentes. No Brasil, segundo a Pnad de 2019, concentram-se, na faixa de renda per capita domiciliar maior do que 5 salários mínimos, 53,2% dos rendimentos de aluguéis e 72,2% dos rendimentos de aplicações financeiras.

A repercussão geracional da desigualdade não se faz apenas diretamente por meio de testamentos vultosos, mas também pelas diferenças de ambientes familiares para o desenvolvimento das crianças em idade educacional. Ainda que a sociedade possa proporcionar escolas de qualidade em condições isonômicas entre as famílias de várias classes sociais, a criança, ao voltar para o lar, encontra condições diferentes de apoio, acolhimento e estímulo para o desenvolvimento cognitivo de suas aptidões. Não obstante haver vários estudos apontando essa influência do ambiente familiar, não é difícil perceber que pais analfabetos quase sempre não estimulam a leitura de seus filhos, como o fazem os pais mais  escolarizados. É mais uma vez a desigualdade de resultado implicando desigualdade de oportunidade.

Um aspecto final que dificulta essa abordagem dual de desigualdades é que a igualdade econômica, mesmo a de oportunidade, enquanto facilmente imaginada, é extremamente difícil de ser obtida. Segundo Okun (1975), “é praticamente impossível de reconhecer uma igualdade completa se ela existir; mas a desigualdade é muito fácil de reconhecer”. Assinala várias situações que representam obstáculos para a elaboração de uma linha de largada igualitária em uma corrida, metáfora comumente usada para os que raciocinam e defendem uma igualdade de oportunidade. Segundo o economista, “o sucesso que depende de quem você conhece em vez de o que você conhece é um claro caso de desigualdade de oportunidade. E isso parece particularmente injusto quando a questão real é quem seu pai conhece”. Pergunta-se: como elaborar uma linha de partida diante dessas circunstâncias fáticas?

A discussão acima serve para derrubar as argumentações por aí repetidas de defesa ao fim da desigualdade de oportunidade, mas de rechaço integral a de resultado. Portanto, são incoerentes esses pontos de vista, caso não se considere algum apoio em relação a algumas medidas contra desigualdade de resultado, tal como a maior taxação de heranças.

Em suma, em sua simples e rápida resposta, sem saber que havia embasamento acadêmico, o motoboy foi cirurgicamente certeiro no seu comentário.

Referência:

Okun, A. M. (1975) Equality and Efficiency. In Atkinson, A. B. (Org.) Wealth, Income & Inequality. Second Edition, Oxford University Press, 1980.

IBGE. Pesquisa Nacional de Amostras por Domicílio (PNAD) 2019. Disponível em: www.ibge.gov.br . Acesso em: 16/8/2020.