segunda-feira, 30 de abril de 2018

Os ricos são os outros


O relatório “Nós e as Desigualdades” publicado pela Oxfam, em dezembro passado, merece ser comentado, dada a riqueza dos seus resultados e as consequências que nos são tão caras, haja vista a nação exorbitantemente desigual que somos. Em agosto de 2017, a Oxfam Brasil juntamente ao Instituto Datafolha foram a campo mensurar a percepção dos brasileiros quanto à desigualdade nacional. Discordamos de uma das conclusões do relatório, fato que, não obstante, não compromete os excepcionais resultados da pesquisa.

Segundo o referido relatório (https://www.oxfam.org.br/nos-e-as-desigualdades ), vejamos primeiro o quadro da distribuição de renda brasileira, retirados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) em 2015, realidade que não deve ter se modificado significativamente em comparação a 2017, ano do estudo. Cerca de 50% dos brasileiros ganham menos de 1 salário mínimo ao mês, 80% até 2 salários mínimos, e 90% até 3 salários mínimos.

Vamos aos resultados do estudo propriamente dito.

Quando se perguntou a população para se auto posicionarem na escala de renda, que vai da pobreza (0) à riqueza (100), 88% dos entrevistados afirmaram que se encontravam na metade mais pobre da população. Ou seja, confrontando com a distribuição real, boa parte dos brasileiros se sentem comparativamente mais pobres do que são realmente, o que nos faz concluir que a percepção de desigualdade da população é bem distinta da real. Logo, a população não menospreza essa mazela, mas, ao contrário, tem uma percepção de desigualdade que é até pior do que a real.


Fonte: Oxfam Brasil/Datafolha 2017

Há uma outra pergunta na entrevista que confirma essa mesma conclusão da percepção do brasileiro de que a desigualdade é pior do que os dados apontam. Perguntou-se qual seria a renda necessária para estar entre os 10% mais ricos do país, lembrando que, como já informado acima, o valor de 3 salários mínimos  - cerca de R$ 3 mil - seriam suficientes para estar entre os 10% mais ricos. Surpreendentemente, para 67% dos brasileiros, seriam necessários mais de R$ 5 mil mensais para participar do grupo 10% mais rico. Mais estarrecedor é que quase metade (47%) achou que seria necessário mais de R$ 20 mil para se enquadrar entre os 10% mais ricos. Ou seja, “os ricos são os outros”. Isso nos leva mais uma vez a concluir que, diferentemente do que o estudo entende, a população brasileira na verdade sobrestima a desigualdade. Ao nosso ver, o brasileiro não se ilude com a desigualdade do país. Pelo contrário, ele vê a desigualdade pior do que ela é.

As entrevistas também trataram de medir a aceitação de várias soluções para atacar a desigualdade, entre elas, a questão tributária. A pergunta inicial foi se “o governo deveria aumentar mais os impostos em geral para garantir melhor educação, mais saúde e mais moradia para os que precisam”. Como esperado, 75% dos brasileiros são contra o aumento de impostos, mesmo que seja para resolver a deficiência de serviços essenciais aos mais pobres.

A coisa muda totalmente de figura, quando a pergunta é se “o governo deveria aumentar os impostos apenas de pessoas muito ricas para garantir melhor educação, mais saúde e mais moradia para os que precisam”. Desta vez, 71% dos brasileiros são a favor do aumento de impostos de pessoas muito ricas. Conjugado com o resultado citado anteriormente, em que a maior parte da população não se acha entre os mais ricos – nem mesmo os apenas ricos –, entende-se que o cidadão brasileiro apoia mais imposto, desde que ele não recaia sobre ele próprio.

Como dizia o dramaturgo Henry Becque, “O que faz a igualdade ser uma questão difícil é que a queremos apenas com nossos superiores”. Não é à toa que reformulações do modelo de bem-estar social são difíceis de serem implementados, uma vez que a definição do corte da população entre contribuintes e beneficiados leva a uma discussão política infindável. Por mais que uma nova agenda política favoreça uma redistribuição de renda, nunca saberemos de antemão quem serão os mais ricos a serem taxados. Há muita gente por aí que se surpreenderá ao ser chamado a contribuir, apesar de não se achar entre os mais ricos.

Como se não bastassem as inúmeras consequências advindas da enorme desigualdade que assola o nosso país, ela ainda gera falhas nas percepções dos cidadãos em magnitude tal que qualquer política pública de combate enfrenta muitos desencontros de como e quanto fazer. A nossa elevada desigualdade acaba por sabotar as próprias medidas contra ela.

Outros resultados da Oxfam, tais como o fato do mérito não explicar as desigualdades e do papel do Estado no combate às desigualdades, serão tratados em posts futuros. 

terça-feira, 24 de abril de 2018

A História da Pobreza – Os primeiros pensamentos iluministas sobre a pobreza - por Ravallion (4)


A Revolução Industrial dava os seus primeiros passos, quando a Europa e os Estados Unidos foram sacudidos por transformações sociais e políticas em fins do século XVIII. A máquina a vapor inventada por James Watt favoreceu não só a industrialização na Inglaterra, como também a sua urbanização, uma vez que agora a fonte de energia prescendia da localização próxima aos cursos de água com potencial hidrelétrico. Assim, surgiram grandes parques industriais na Inglaterra, tendo como maior destaque o de Manchester.

Na verdade, é mais fácil compreender a Revolução Industrial como consequência do que como causa das grandes mudanças no Século das Luzes. Não é à toa que ela tenha se iniciado na Inglaterra, haja vista a contribuição da Revolução Gloriosa de 1688, que equilibrou os poderes entre a realeza e o parlamento, assim como o advento da Lei das Patentes, a diminuição de impostos sobre as manufaturas e o corte de monopólios reais, que impulsionaram os negócios. Por outro lado, as novas políticas e tecnologias enfrentaram alguma resistência de outras nações, como a Rússia, o Império Austro-húngaro e a França, que necessitou de uma revolução política para avançar para novos tempos. Enquanto isso, do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos, uma nação emergente abraçava tais novidades sem solavancos.

Junto às alterações políticas e tecnológicas, sobrevieram mudanças sociais, explicitadas pelos inúmeros ensaios filosóficos na época. Tendo como pano de fundo o aumento da pobreza e da desigualdade, era cada vez mais fixa a ideia de que o Estado poderia exercer um papel importante no combate às desigualdades de oportunidade, que favoreciam os setores mais abastados, e aos privilégios manipulados e não competitivos de mercado, às vezes, agravados pela própria atuação do Estado. Emergiu a consciência da importância de novas instituições econômicas e políticas que deveriam atender a todo o povo, a exemplo do sufrágio universal. Na literatura, nunca antes havia sido escrito tanto sobre pobreza, miséria e indulgência.

O lema da Revolução Francesa – Liberté, Égalité, Fraternité – revelava os vários avanços nessa linha de pensamento. A arguida liberdade correspondeu ao significado comumente dado nos tempos modernos, no sentido de proporcionar a todos participações cidadã e política. Já a igualdade alcançava apenas os direitos legais relacionados à igualdade de oportunidades. Permanecia, pois, na França, na época do Código Napoleônico, a concepção de alocação da riqueza em função das habilidades das pessoas e o entendimento de afastamento do Estado das questões redistributivas, ao menos, momentaneamente.

O Iluminismo, base filosófica para todos esses acontecimentos, foi um movimento que envolveu todas as grandes questões da época, inclusive uma nova visão sobre a pobreza e a desigualdade, as quais se passou a entender que não eram mais inevitáveis.

Um pouco antes, no século XVII, Thomas Hobbes já perguntava como deveria ser um bom governo para coibir o estado natural de conflito que existiria em uma sociedade sem regras. Essa era uma questão controversa e muito debatida. No século seguinte, o iluminista Jean-Jacques Rousseau, em sua obra Discurso sobre a Origem da Desigualdade (1754), trabalhava, em substituição ao estado natural, a ideia de desigualdade natural que decorreria de diferenças inatas, como saúde, força, habilidade mental, etc. No entanto, essa desigualdade era agravada pelas instituições existentes, gerando uma desigualdade moral e política. Para o seu contemporâneo Immanuel Kant, todo ser humano deveria ser tratado “como fim, nunca como meio”. Houve a sobrelevação da agenda de combate à pobreza e à desigualdade, cujo protagonismo de atuação deveria pertencer ao Estado.



O pensamento econômico também evoluiu. Grande expoente da época, Adam Smith atacou o mercantilismo e o defendido balanço de pagamentos, baseado no superávit de commodities, como medida de bem-estar das nações. O economista é lembrado por defender a virtude do interesse próprio de cada agente econômico como indutor do crescimento econômico e do bem-estar coletivo em ambientes de mercados competitivos e de garantia de direitos de propriedade. Com essa visão abrangente da economia, segundo Ravallion, Adam Smith viu que, em prol do desenvolvimento, a luta contra a pobreza seria algo a ser perseguido. A garantia da propriedade, porém, não deixava de ser um instituto que perpetuava a pobreza, mas os ganhos em incentivos econômicos eram maiores. Entendia-se que “a desigualdade de hoje é necessária para evitar a pobreza amanhã”, concepção que ecoou e influenciou por séculos muitas escolas de pensamento econômico. Por outro lado, foi banida a ideia de que a pobreza tinha uma utilidade intrínseca para as economias e de que os pobres trabalhariam menos com o aumento dos salários. Apesar do não intervencionismo estatal e do livre mercado, Adam Smith também defendeu subsídios para cobrir a educação dos mais pobres.

Surgiram, assim, as primeiras propostas práticas de minorar a desigualdade. A arrecadação de impostos, bem como a estrutura de gastos governametais, poderiam servir de meio para redistribuir a renda ou, ao menos, não agravar o estado de desigualdade já crescente à época. O sistema tributário deveria ser progressivo, com os ricos pagando impostos proporcionalmente mais elevados do que os pobres. Segundo Ravallion, Adam Smith teria argumentado em favor da isenção para salários de subsistência conjugada com uma progressividade tributária.

Thomas Paine, na mesma época, defendeu que as terras agricultáveis, por serem propriedades naturais, deveriam ser taxadas e as correspondentes receitas destinadas igualmente a todos os adultos, um benefício que não seria caridade, mas considerado um direito, em razão do alegado direito de que todos cidadãos teriam sobre as terras. Essa foi a primeira proposta de renda básica universal.

A educação básica universal passou a ser vista como uma solução para o desenvolvimento das sociedades, assim como a equalização de direitos fundamentais para as mulheres e todas as raças. O filósofo e matemático Condorcet advogou pela universalização gratuita da educação básica. Apesar desses avanços de pensamento, tais ideias foram encaradas como radicais à época, contra as quais resistiam principalmente os ricos e a Igreja. Demorou mais de um século para que a massificação da educação e o sufrágio universal fossem implementados largamente.

Ravallion destaca ainda o nascimento da pesquisa empírica sobre pobreza pelas mãos de Sir Frederick Eden, que, ainda sem os recursos da economia moderna, deixou escritos históricos sobre as classes trabalhadoras inglesas, como também usou de muito empirismo em seus estudos, chegando a influenciar o debate da Lei dos Pobres.

Em suma, houve grandes avanços no pensamento sobre a pobreza, evocando o esforço público de combate à pobreza e tornando essa medida uma questão moral para o Estado. Entretanto, à exceção da Lei dos Pobres na Inglaterra e no País de Gales, nenhuma articulação de políticas públicas atuou a favor dos pobres efetivamente. Os principais beneficiários econômicos dessas mudanças foi a incipiente classe média que até então havia sido excluída do acesso à riqueza e ao poder.

domingo, 15 de abril de 2018

Estado desigual, estado pobre


O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou na última quarta os resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua contendo rendimentos de todas as fontes para o ano de 2017 (https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/20843-pnad-continua-10-da-populacao-concentravam-quase-metade-da-massa-de-rendimentos-do-pais-em-2017.html ).

As informações publicadas são de grande valor para a compreensão da nossa realidade socioeconômica em níveis nacional e regional. Há análises dos rendimentos de diversas fontes (trabalho, aposentadoria e pensão, aluguel, pensão alimentícia) e, principalmente, dos números aterrecedores de desigualdade. Recomendamos, portanto, visitar o endereço do IBGE acima para conhecer os resultados da pesquisa.  Não nos cabe reproduzir aqui as análises do órgão nacional de estatística, mas somente traçar mais alguns entendimentos.

A desigualdade de renda se relaciona bastante com o nível de renda média de cada população, quando se olha o quadro geral dos estados brasileiros. Abaixo, traçamos um gráfico de dispersão do índice de Gini pela renda familiar média em R$, com uso de dados retirados da Pnad 2017 (Figura 1). Percebe-se que, quanto maior a renda média, menor será a desigualdade no geral. A linha de tendência traçada no meio do gráfico mostra uma leve declividade, demonstrando esse ponto de vista.

    Figura 1 - Índice de Gini versus renda familiar média

Fonte: Pnad 2017, elaboração própria.

O gráfico, assim, revela uma evidente desigualdade regional, outro problema secular do nosso país. Somos dois países em um. O primeiro com renda média mais baixa e desigualdade mais alta no canto superior esquerdo, representados pelas regiões Norte (pontos verdes) e Nordeste (pontos amarelos); e o segundo com renda média mais alta e desigualdade mais baixa, abrangendo as regiões Sudeste (pontos pretos), Sul (pontos azuis) e Centro-Oeste (pontos laranja).

É claro que há estados que fogem do comportamento esperado. Se não fossem esses estados “rebeldes”, a tendência seria mais claramente decrescente, como se quer demonstrar.

Tome por exemplo o Distrito Federal que, não obstante a alta renda, possui o segundo maior índice de Gini do país, só perdendo para o Amazonas. O que explica isso é o fato de a Capital do país possuir um mercado de trabalho atípico com o seu amplo e bem pago corpo de funcionários públicos federais, em meio a um mercado privado relativamente menor e uma população muito maior, estes últimos com remunerações menores.

Rondônia e Tocantins também distoam dos elevados patamares de desigualdade da região a que pertencem. Fácil perceber que, em termos de variáveis socioeconômicas, comumente há um continuum geográfico. Assim, os referidos estados possuem características econômicas muito mais parecidas à sua vizinha região Centro-Oeste, por compartilhar com ela uma fronteira agrícola próspera na geração de riqueza. Se esses estados tivessem os padrões de desigualdades altos de sua região, a linha de tendência se desenharia mais firmemente para baixo.

Essa relação inversa entre renda e desigualdade nos faz lembrar dois teóricos: Alberto Alesina e Dani Rodrik. Durante muito tempo, perguntou-se qual o efeito do crescimento econômico sobre a distribuição de renda. Os economistas inverteram a pergunta: qual seria o impacto da desigualdade de renda sobre o crescimento econômico? Chegaram à conclusão de que as sociedades mais desiguais em renda crescem menos. Assim, estados desiguais tendem a ser estados pobres.

Segundo eles, o motor do crescimento econômico é a acumulação de capital. Por outro lado, o governo se financia por meio de impostos sobre o capital, o que diminui os incentivos do mercado para buscar o crescimento. Assim, o empresário tem interesse por menor carga tributária, enquanto que o restante da população que não sofre essa tributação prefere um nível maior de serviços prestados pelo estado, ou seja, maior tributação. Ocorre que, em sociedades mais desiguais, com um empresariado reduzido e uma enorme população necessitada, o eleitor mediano, cujo voto teoricamente decide o governante, preferirá uma agenda de mais Estado, mais tributação e, consequentemente, menor crescimento econômico. Como toda teoria, ela não é infalível. Neste caso, basta lembrar o contraexemplo dos países nórdicos, nos quais os mais baixos índices de desigualdades convivem com alta tributação do Estado.

Voltando para o nosso caso doméstico, verificamos que o resultado da teoria acima se aplica significamente ao se comparar os Estados brasileiros, apesar de possivelmente não podermos adotar, sem maiores estudos, a rationale trazida por tal teoria. Mas vale considerar que a desigualdade de renda é concomitantemente causa e efeito do crescimento econômico.

domingo, 8 de abril de 2018

A História da Pobreza – As primeiras políticas de combate à pobreza – por Ravallion (3)


Como indicado no post anterior, os séculos XVI e XVII foram um período em que a pobreza era tema relegado ou, quando muito, considerada uma situação que deveria ser mantida em prol do crescimento econômico na égide do modelo mercantilista. Todavia, isso não evitou que as primeiras políticas sociais de combate à pobreza surgissem. Vale lembrar que eram em outros moldes e pouco comparáveis aos dias de hoje.

Essas primeiras iniciativas foram motivadas pela preocupação com a estabilidade social ameaçada pelo aumento da pobreza entre a iniciante classe trabalhadora, oriunda da migração do campo para as grandes cidades europeias, e mesmo a classe média, já sujeita a choques negativos já no alvorecer do capitalismo. Esses eventos negativos, tais como a perda de emprego, doenças e acidentes, agravavam a pobreza e a fome. Houve assim o reconhecimento de que o capitalismo possuía ciclos de alta e baixa e as mudanças tecnológicas exigiam adaptações sociais. No entanto, as ações abordavam a pobreza somente de modo paliativo e passavam ao largo das questões de desigualdade.

Nos séculos XVI e XVII, como resultado das transformações setoriais nas maiores cidades, sobretudo as inglesas, veio o advento das primeiras políticas sociais, para responder a miséria e, como alegado pelas elites, a ampla vagabundagem nas ruas. Para se ter uma ideia melhor, o ócio dos ladrões era considerado o principal problema social. À título de exemplo, segundo Ravallion, a primeira força policial na Inglaterra, a Polícia do Rio Tâmisa criada em 1800, foi estabelecida para policiar os trabalhadores suspeitos na capital inglesa, não para proteger toda a população, entre eles os mais pobres.

A principal medida foi a criação das casas de trabalho financiadas pelo poder público. Segundo Ravallion, William Petty argumentava que era melhor empregar o pobre em trabalhados improdutivos – era conhecido a sua proposta de um projeto público que fizesse os pobres mover pedras da Stonehenge para a Tower Hill em Londres – do que deixá-los no ócio. As primeiras casas de trabalho foram criadas no fim do século XVI e consistia em fazer com que os beneficiários aceitassem o encarceramento e fossem obrigados a trabalhar em atividades insalubres, entre elas quebrar pedras.

As casas de trabalho não se sustentavam por meio dos produtos gerados pelo trabalho dos beneficiários internos, mas antes se justificavam pela concepção de que a pobreza decorria do mau comportamento, o qual as casas podiam controlar e, quem sabe, corrigi-lo. Existia também, a ideia de que a politica pública das casas de trabalho continha um mecanismo automático de focalização, uma vez que se acreditava que apenas as pessoas mais necessitadas a procurassem. No entanto, isso era conseguido impondo um alto custo de estigma e subjugação aos participantes, como é bem retratado pelo garoto Oliver Twist, que dá nome à famosa obra do escritor inglês Charles Dickens (Figura 1). Esta concepção de política pública, de auxílio do Estado conjugado à exigência de trabalho, inspirou e inspira muitas medidas contra a pobreza ainda nos dias de hoje.

Figura 1 – Casa de Trabalho para miseráveis e órfãos, cena do filme Oliver Twist



Com o aumento das taxas de pobreza nas grandes cidades inglesas e europeias no século XVI, foram fomentadas novas ideias de combate à pobreza, entre as quais se destacou o legado do espanhol Juan Luis Vives. Em Bruges, onde fez carreira, ele escreveu um ensaio que aconselhava, após realizado um censo da população pobre, que a todos os pobres aptos ao trabalho deveria ser dado um ofício público ou privado. Caso uma pessoa não conseguisse o suficiente pelo próprio trabalho, deveria o Estado promover uma transferência em dinheiro adicional, de modo a essa pessoa alcançar o nível das suas necessidades básicas.

Na Inglaterra no século XVI, as ideias de Vives inspiraram a antiga Lei dos Pobres - assim chamada aqui devido à sua primeira concepção, antes das reformas de 1834 –, que foi implementada por Henrique VIII e depois formalizada por Elizabete I. A Lei do Pobres era um sistema público financiado localmente e consistia em pagamentos contingentes à ocorrência de eventos, como velhice, viuvez, deficiências física e mental, enfermidade e desemprego. As casas de trabalho ainda operavam para o caso das pessoas consideradas aptas ao trabalho.

Na iminência do surgimento do Estado moderno, o papel da proteção social começou, portanto, a ser protagonizada pelo setor público. Já em fins do século XVIII, a Lei dos Pobres, implementada pelas localidades inglesas, chegou a somar 2% da renda nacional do país. Enquanto isso, no restante da Europa, a caridade privada ainda era a principal fonte de alívio da pobreza, não passando, todavia, de 1% da renda nacional na maioria dos países. Apesar de a caridade continuar a existir na Inglaterra, houve um deslocamento da proteção social da sociedade para o Estado.

Apesar das críticas acerca dos efeitos indesejáveis sobre a força de trabalho das pessoas pobres –  provocava preguiça e alta fertilidade por meio de casamentos precoces –, a Lei dos Pobres foi uma iniciativa de longa duração e considerada uma bem sucedida política de proteção social para a época. Ela foi a política que mais fazia sentido mesmo para uma parte da elite, pois mantinha a estabilidade social da classe trabalhadora, evitava os tumultos recorrentes e concedia alguma proteção, não obstante sem ameaçar a desigualdade da riqueza nas sociedades. Nesse sentido, ela era uma politica predominantemente de caráter de proteção, ou seja, visava somente aliviar a pobreza (o que já era muito importante) de choques negativos com uso de meios paliativos temporários; em contraposição a uma política social de promoção de combate à pobreza crônica, que atuaria para fazer com que as famílias escapassem realmente da pobreza. Quando muito, a Lei dos Pobres foi motivada por um sentimento de caridade, ficando longe do senso de justiça, esta que passou a dominar a concepção das futuras políticas sociais, sensíveis ao aspecto da justiça distributiva.

No próximo post, apresentaremos como o Iluminismo europeu, nos fins do Século XVIII, acarretou mudanças econômicas, culturais e sociais, entre elas, uma nova forma de ver e entender a pobreza.