sábado, 31 de março de 2018

Renda básica universal: o Santo Graal?


Para sair do papel, um programa governamental precisa atender a muitos aspectos, tais como: técnico, jurídico, político e orçamentário. Raramente, uma nova proposta de política pública atende igualmente todos esses aspectos.  Eis o crivo pelo qual passa qualquer iniciativa governamental em qualquer área de intervenção. Entretanto, há uma inovação nem tão recente, em termos de redução da desigualdade e de combate à pobreza, que poderia representar uma revolução na direção do estado de bem-estar social no Brasil: a renda básica. Analisamos aqui se essa proposta atende os vários citados aspectos de viabilidade de implementação.

A renda básica, como definida por Philippe Van Parijs (2000), um dos principais estudiosos sobre o tema, é “uma renda paga por uma comunidade política a todos os seus membros individualmente, independente de sua situação financeira ou exigência de trabalho”. A renda básica é uma proposta bastante simples e talvez, por isso, tenha surgido em vários lugares do mundo e recebido uma diversidade de nomes, como benefício universal, salário do cidadão e bônus estatal. No entanto, ao mesmo tempo que é simples, a sofisticação dos detalhes de sua implementação pode influenciar no seu êxito.

Essa ideia não é nova e tem sido defendida por uma miríade de acadêmicos de escolas distintas, como John Maynard Keynes, Milton Friedman, James Tobin e John Kenneth Galbraith, só para citar os principais nomes. No Brasil, destaca-se Antonio Maria da Silveira, que em 1975 publicou o primeiro trabalho acadêmico sobre o assunto, e o ex-Senador Eduardo Suplicy, que fez do tema a sua bandeira (para maiores informações pesquisar em: Suplicy, 2013).

A experiência prática da renda básica mais citada internacionalmente é a do distante estado americano do Alasca, que com a ajuda de royalties do petróleo implementou um fundo que paga a renda básica universal para seus cidadãos. No Brasil, existe o exemplo isolado do pequeno município paulista de Santo Antônio do Pinhal. Parece que a renda básica já encontrou boas experiências em menor escala. Há desafios, se expandida para populações maiores e com alto grau de desigualdade.

A renda básica é comumente construída em conjugação com uma alteração no imposto de renda. Como não poderia deixar de ser, pois um benefício é uma transferência direta ao cidadão, assim como imposto de renda é uma arrecadação direta do seu bolso. Tradicionalmente, o imposto de renda só é cobrado pelo Estado a partir de um certo valor de renda e sobre o excesso deste valor. Suponhamos que esse valor seja de $ 1000 e que a alíquota de imposto a partir de tal valor seja 10%. Deste modo, um cidadão só pagará 10% sobre a renda que ultrapassar $ 1000, não pagando nada, se a renda for exatamente este valor, como segue na Figura 1 (linha vermelha). Ou seja, tal cidadão de renda $ 1000 aufere uma isenção de $ 100 (10% x $ 1000) (linha azul).

                Figura 1- A lógica do imposto de renda negativo


                Fonte: elaboração própria, baseado Van Parijs (2000)


Mas uma pessoa que ganhe apenas $ 200, aplicando-se a mesma alíquota inicial, teria uma isenção menor de $ 20 (10% x $ 200) (linha azul). Por que o mais rico tem uma isenção de $ 100 e o mais pobre teria uma isenção de $ 20 apenas? Isso não seria justo. Para equalizar essa situação e torná-la mais justa, argumenta-se que o Estado deveria reverter para a pessoa de menor renda um benefício complementar de $ 80, o que pode ser visto como um “imposto de renda negativo” (linha verde).

Assim, o Estado poderia elaborar um esquema equivalente, definindo um benefício de renda básica de $ 100 para todos os cidadãos, sejam eles pobres ou ricos, mas estabelecendo um imposto de renda geral de 10%, sem faixa nenhuma de isenção (linha azul). As pessoas com renda acima de $ 1000, inclusive os muito ricos, receberiam também esta renda básica de $ 100, mas pagariam mais – no caso dos ricos, muito mais – em imposto de renda, fazendo com que a diferença entre o imposto de renda e o benefício seja positivo. Para o pobre que ganhasse menos que os $ 1000, ele receberia um “imposto de renda negativo”, correspondente ao recebimento de um benefício de renda básica superior ao imposto pago.

Do ponto de vista técnico, a renda básica seria uma ação governamental atraente, possuindo muitas vantagens. A primeira delas é a desnecessidade de existir todo um aparato governamental para gerir, controlar e identificar os cidadãos beneficiários, haja visto que todos os cidadãos trabalhadores ou não, ricos ou pobres, receberiam o benefício, ou seja, seria universal e não focalizado. Fato esse que diminui a burocracia necessária para implementar a política pública. Isso economizaria um orçamento não desprezível comparativamente a um programa de renda focalizada, como o Bolsa Família, que exige uma estrutura administrativa ampla para identificar e acompanhar quais as pessoas que devem ser beneficiárias, aquelas que vivam em famílias com renda per capita familiar menor de R$ 170 mensais. Pagando-se um benefício universal a todas as pessoas, não haveria a necessidade de controle, a não ser a prova de vida dos beneficiários.

Também, há de se considerar os efeitos de um programa de renda básica no mercado de trabalho. É recorrente a acusação que se faz contra os beneficiários do Programa Bolsa Família de que, por receberem o benefício, teriam pouca disposição ao trabalho. Apesar de acreditar que os valores tão baixos pagos pelo referido programa são insuficientes para provocar esse desincentivo, essa possibilidade não pode ser descartada, à medida que os valores aumentem. A renda básica teria alguns avanços em comparação a um programa condicionado à renda, tal como o Bolsa família. Ao contrário de um programa condicionado à renda, o cidadão que recebe a renda básica tem incentivo para buscar trabalho e aumentar a sua renda, pois não há por que temer perder o benefício que lhe é garantido, independente da nova renda obtida. Haveria outras melhorias colaterais nos rendimentos no mercado de trabalho, os quais, pelo espaço exíguo aqui, deixamos para análise em posts futuros.

Por outro lado, há cuidados a se ter. Uma preocupação, de natureza conservadora, é com o efeito sobre a natalidade advindo de um programa de renda atrelado ao número de filhos. Esse desenho acontece com o Bolsa Família, como também pode acontecer com um programa básico universal. Essa preocupação poderia ser afastada por meio da restrição da renda básica somente aos indivíduos adultos, o que acontece em alguns países, como aponta Van Parijs (2000), ou por meio da limitação de filhos aptos a receber o benefício, algo que ocorre no Bolsa Família, quando limita o número máximo de crianças e adolescentes que podem receber o benefício por família.

Um programa de renda básica universal também pode vir a estimular a imigração de países vizinhos que tenham uma rede de proteção social precária. Para coibir isso, a maior parte dos programas de renda básica estabelecem um prazo mínimo de residência anterior para fazer juz ao benefício.

Do ponto de vista político, um programa de renda básica exigiria um trabalho de convencimento não trivial perante a sociedade, visto que, quando da sua implementação, pode enfrentar resistência até inesperada de alguns setores. Os ricos terão que arcar ainda mais com o programa e seriam obviamente os primeiros opositores. Já os pobres, os maiores beneficiados, poderiam paradoxalmente se opor ao programa, por entender que o benefício não deveriam ser pagos também aos ricos. Portanto, a estratégia de comunicação seria fundamental para impulsionar uma iniciativa dessas, afastando os prováveis desentendimentos, reforçando a ideia de justiça social.

Entretanto, o maior problema de uma renda básica universal reside na sua inviabilidade fiscal, dependendo do patamar de renda básica estabelecido, lembrando que o valor da renda básica não precisa estar vinculada ao valor das necessidades básicas humanas. Infelizmente, o impacto fiscal é tanto maior, quanto maior for a desigualdade na sociedade, mazela esta que ainda nos aflige bastante.

Façamos um exercício com os dados brasileiros para que se esclareça essa última afirmação. Parcimoniosamente, estipulemos aleatoriamente um valor mensal de R$ 250,00 de renda básica para cada cidadão, o que equivaleria a aproximadamente um quarto do valor atual do salário mínimo. Como exemplo, uma família tradicional com quatro membros, pais e dois filhos, ganharia R$ 1000 mensais de benefício, o que fica ainda muito longe do mínimo para o atendimento das necessidades básicas no Brasil. Acontece que o orçamento para implementação dessa medida, ao considerarmos a população brasileira de 200 milhões de pessoas, somaria cerca de R$ 50 bilhões mensais ou R$ 600 bilhões ao ano. Para termos uma ideia do que isso representa em termos de magnitude no orçamento brasileiro, o valor gasto anualmente com o Programa Bolsa Família é em torno de R$ 25 bilhões pagos a quase 14 milhões de famílias (TCU, 2015).

Esse valor de renda básica poderia ser custeado pelo imposto de renda pago pelos mais ricos na estrutura do imposto de renda brasileiro? Relatório da Receita Federal registrou que em 2015 cerca de 26,5 milhões de declarantes de imposto de renda pessoa física somaram, em imposto devido, R$ 114 bilhões (SPE, 2016), montante este seis vezes inferior ao que seria necessário na renda básica universal. Mesmo considerando que esse imposto seria maior, ao se eliminar as isenções de acordo com o desenho do imposto de renda negativo, o valor adicionado ao imposto devido acima não seria ainda suficiente, ficando bastante distante dos R$ 600 bilhões.

O governo teria que lançar mão da extinção ou unificação de outros benefícios sociais para implementar a renda básica, o que promoveria uma reformulação do sistema de benefícios sociais. Talvez essa seja a inflexão necessária. Além dos R$ 25 bilhões do Bolsa Família já comentado, o Benefício de Prestação Continuada (BPC) gasta cerca de R$ 33 bilhões anuais (TCU, 2015). Mesmo esses valores somados estariam muito distantes dos R$ 600 bilhões calculados. O sistema de proteção social, considerando os gastos previdenciários e seguro-desemprego, seriam os próximos a serem contabilizados em uma reforma para adoção da renda básica, ainda assim, com ganhos de benefícios para alguns e perdas para outros. Por fim, juridicamente, a renda básica universal, dependendo da amplitude das mudanças mencionadas logo acima, certamente necessitaria de uma gama de alterações e reformas no capítulo social da Constituição, uma tarefa hérculea de proposição de emendas com vários interesses antagônicos em jogo.

Logo, a renda básica universal, apesar de conter algumas vantagens técnicas e institucionais, possui vários dificultadores de ordens política, orçamentária e jurídica. Não é a toa que as ideias mais transformadoras são as que trazem os maiores desafios. A humanidade ainda está em busca do Santo Graal para solução da pobreza e da desigualdade. A pesquisa continua e os desafios também.

Referências:
Ministério da Fazenda, Secretária do Política Econômica (SPE). Relatório da Distribuição da Renda e da Riqueza da População Brasileira. Brasília, 2016, Disponível em: http://www.spe.fazenda.gov.br/noticias/distribuicao-pessoal-da-renda-e-da-riqueza-da-populacao-brasileira/relatorio-distribuicao-da-renda-2016-05-09.pdf .
Suplicy, Eduardo M.. Renda de Cidadania: a saída é pela porta. Cortez Editora, 7 ed. São Paulo, 2013.
Tribunal de Contas da União. Relatório Sistêmico de fiscalização da Assistência Social. Relator Ministro-substituto Augusto Sherman Cavalcanti. Brasília, 2015.
Van Parijs, Philippe. Renda Básica: renda mínima garantida para o século XXI? Estudos Avançados, v. 14, n. 40, 2000.

domingo, 18 de março de 2018

A História da Pobreza – Mercantilismo – por Ravallion (2)


Seguindo Ravallion (2016), antes do século XVIII, o tema pobreza era raramente reconhecido como algo que prejudicasse o desenvolvimento econômico. A Idade Moderna, que se iniciou com as Grandes Navegações e o Renascimento, ainda era época de pouca atenção para com a pobreza. Os pobres eram deixados à margem do processo de desenvolvimento.

O sistema econômico adotado naquela época foi o Mercantilismo. Thomas Mun, o principal teórico mercantilista, que havia sido diretor da Companhia das Índias Orientais, a maior empresa de comércio britânica e a primeira marca mundial, defendia que a riqueza advinha das trocas comerciais entre países e, ao acreditar que a balança comercial global era um jogo de soma zero, preconizava que as nações europeias ricas deveriam manter positivas as suas balanças comerciais – exportações menos importações. Com esta visão de recursos limitados para a extração de riquezas, o desenvolvimento das nações mais organizadas era construído às custas da exploração de suas colônias pobres, fato esse que era desfavorável para a redução da pobreza globalmente.

Internamente, a participação do governo para minorar a pobreza era um sonho distante. A única participação do governo, reivindicada à época, era a de maximizar a balança comercial por meio da manutenção dos baixos custos de produção, o que implicava depauperar as matérias-primas dos países periféricos e garantir uma mão de obra local paga a salários muito reduzidos.

Assim, a pobreza era encarada como uma pré-condição para o desenvolvimento; a pobreza tinha essa utilidade então: possibilitar o crescimento econômico. A “utilidade da pobreza” era um meio para se atingir esse fim. Entendia-se, inclusive, que a fome da massa de pobres encorajaria o trabalho.

Similarmente, o aumento do salário diminuiria a disposição dos pobres ao trabalho, pois acreditava-se que os pobres tinham uma propensão maior ao lazer, um raciocínio que encontra eco até nos tempos atuais. Eram emblemáticos os relatos da época sobre a maior procura de bares, quando se concedia algum aumento de salários aos pobres. Teoricamente, acreditava-se que a curva de oferta de trabalho em função do salário dos trabalhadores era decrescente, ou seja, o efeito renda era maior que o efeito substituição do lazer pelo trabalho nas curvas de utilidade dessa população pobre. Essa crença não era plausível, haja vista que alguns defendiam contrariamente que o efeito substituição passava a dominar, mas quando os salários eram maiores, no caso da classe mais rica, fazendo com que a curva fosse crescente nesse trecho (Figura abaixo). Era uma questão empírica que não chegou a ser comprovada. Além do mais, a curva neoclássica de oferta de trabalho é côncava, não convexa como na figura.


 Fonte: Ravallion (2016), elaboração própria.

Muito menos, deveriam os governos dar suporte direto aos pobres, a exemplo da transferência de renda, visto que viam que não só desencorajaria o trabalho, como também inflaria os salários na economia, o que afetaria o modelo de desenvolvimento do Mercantilismo. Para os teóricos sociais da atualidade, essa intervenção do governo, apesar da distorção econômica que afetaria os contribuintes e empregadores, seria meritória no contexto da função redistributiva para o qual os estados contemporâneos caminharam.

Lembremo-nos do atual Bolsa Família, que, além de ter proporcionado diretamente renda a milhões de brasileiros, certamente provocou indiretamente melhoria da renda do restante da população mais desprovida.

A visão cruel da pobreza à época do Mercantilismo não passava também de uma forma de racionalizar o privilégio dos ricos, aliviando-lhes os seus complexos de culpa. Segundo eles, os pobres gastariam mais de seus ganhos salariais em lazer e vícios. Considerações de julgamento moral sobre a virtude do trabalho para os pobres e a tentativa de interferir nas preferências desse público vulnerável deram origem a um comportamento de paternalismo de interferência do estado, que ainda hoje domina as discussões sobre medidas de combate à pobreza.

Em suma, enquanto que a pobreza nos dias de hoje é considerada um empecilho para o desenvolvimento, naquele tempo, era tomada como uma “mercadoria social”, paga a salário vil em prol de manter uma economia competitiva. Quase nenhuma atuação governamental de combate à pobreza era vislumbrada. Isso começou a mudar com as profundas transformações históricas de fins do século XVIII. Antes disso, no próximo post, veremos porém como eram algumas políticas sociais incipientes e esparsas antes do Século das Luzes.

Bibliografia: Ravallion, M. The Economics of Poverty. Oxford University Press, 2016.

domingo, 11 de março de 2018

A História da Pobreza – por Ravallion (1)


Iniciamos aqui uma série de resumos de bons livros sobre o tema pobreza. E o livro escolhido para começarmos é o excelente trabalho de Martin Ravallion, chamado A Economia da Pobreza, escrito no ano de 2016. O citado livro, na verdade um compêndio de 700 páginas, é tão rico e denso, que resolvemos aqui apresentar resumos sequenciais de partes do livro, entremeados com observações e intepretações dos autores deste blog. Iniciaremos pela evolução do pensamento sobre a pobreza nas Idades Antiga e Média.

Antes da Idade Moderna, a pobreza era situação que preocupava pouco à sociedade. Na esteira dos impérios e monarquias, o Estado não era entendido como locus para se solucionar questões ligadas à justiça e redistribuição de renda.

Por volta de 500 a.C., Confúcio até que entendia a pobreza como uma das seis calamidades que deveria ser combatida pelo governo. As demais eram a morte prematura, a doença, a miséria, a aparência repulsiva e a fraqueza. Em contraposição, havia cinco bençãos: meios amplos, vida longa, saúde, bom caráter e aparência agradável. Contudo, ele ainda não se preocupava com a pobreza crônica associada à desigualdade da riqueza. A pobreza só deveria merecer alguma atenção, quando ameaçasse a ordem harmoniosa da sociedade. Segundo ele, “Quando as pessoas mantiverem as suas respectivas posições sociais, não haverá pobreza; quando a harmonia prevalecer, não haverá escassez para as pessoas; quando houver calma, não haverá rebeliões”.

Foto: Aristóteles

Aristóteles, um dos maiores filósofos gregos, afirmava já em 350 a.C. que a justiça distributiva deveria atender à meritocracia, ou seja, que as premiações econômicas e sociais deveriam ser alocadas de acordo com o mérito. Esse raciocínio influenciou significativamente a humanidade, impregnando o pensamento ocidental moderno, sendo uma filosofia atraente para uma livre classe média e uma esperança para os pobres livres desde aqueles tempos. É bom que se ressalte a adjetivação “livre”, pois, como sabemos, a Grécia contava com um contigente escravo que a sustentava. Apesar de Aristóteles já conhecer e trabalhar conceitos como “igualdade de oportunidades” e “liberdade”, estes eram institutos que, perante à escravidão, eram de aplicação mitigada. Valorizava muito mais a “ordem natural” das posições sociais.

Nos primeiros tempos, os governos não exerciam papel preponderante no combate à pobreza, restringindo-se a atacar somente aspectos transientes da pobreza, como a fome. De tão omissos, os governos faziam muito menos do que a caridade praticada pelas sociedades que eram incentivadas pelas onipresentes organizações religiosas. Em 50 a.C., o pensador romano Marco Túlio Cícero, que era contrário à redistribuição de renda, defendia que beneficência era coisa totalmente distinta da justiça social. Esta cabia ao Estado garanti-la, enquanto que aquela era exclusividade do voluntarismo das pessoas caridosas.

O frade católico erudito Tomás de Aquino, ainda no século XIII, compartilhava com Aristóteles a ideia de que a redução da pobreza não era tarefa de governos. O clérigo inovou com a compreensão generosa de que um roubo poderia ser perdoado, caso o ladrão corresse o risco de morrer de fome, o chamado furto famélico. Apesar disso, Tomás de Aquino, assim como Aristóteles, era defensor dos direitos privados de propriedade e o furto famélico apenas pudia ser aceito como um caso extremo de necessidade. Fora isso, o religioso considerava qualquer roubo como pecado mortal.

Assim, a pobreza, no começo da humanidade, era assunto relegado a planos inferiores. Foi apenas nos últimos 200 anos que a pobreza ganhou notoriedade como algo a ser erradicado das sociedades. Mas, antes de chegarmos à Idade Contemporânea, passaremos ainda por outras concepções insensíveis à pobreza durante o mercantilismo. Deixemos para o próximo post.

sábado, 3 de março de 2018

Gini, para que me serve?


Quando se divulga a taxa de desemprego, sabe-se que o valor representa a proporção de pessoas que não encontraram ocupação no período considerado. Ao se publicar a taxa de inflação, é facilmente sabido que, em média, os preços gerais da economia subiram percentualmente no valor divulgado. Uma taxa de pobreza também é compreendida, sem dificuldades, como a razão de pessoas em uma sociedade que estão abaixo de condições mínimas de uma vida decente. E quando um indicador de desigualdade de renda, como o Coeficiente de Gini, é anunciado, alguém sabe o que ele exatamente mede em termos absolutos?

O Coeficiente de Gini foi popularizado pelo estatístico italiano Corrado Gini no começo do século XX.  Diz-se popularizado, porque, de fato, não foi o italiano que criou o famoso coeficiente. Como explica Anthony Atkinson, no seu livro Desigualdade, cerca de 30 anos antes a divulgação do coeficiente por Corrado Gini, a sua estatística básica já havia sido proposta por dois alemães: Carl Christopher von Andrae e Friedrich Robert Helmert.

Para entendê-lo, lança-se mão geralmente de um diagrama não menos famoso: a curva de Lorenz. Nesse diagrama, traça-se um gráfico da proporção de renda total acumulada em função da proporção da população, esta ordenada por rendas crescentes. Assim, uma população perfeitamente equalitária seria representada pela diagonal do gráfico (OB), uma vez que cada membro da população contribuiria com o mesmo incremento de renda e, assim, gerando a inclinação uniforme na reta do gráfico. Ao contrário, em uma sociedade de rendas desiguais, o gráfico se iniciaria com os mais pobres – à esquerda –  causando uma inclinação mais plana no gráfico e terminaria com os mais ricos provocando inclinações maiores – à direita –, gerando assim a curva inferior à diagonal do gráfico. Quanto maior esse embarrigamento da curva, ou seja, quanto mais distante da diagonal de perfeita igualdade, maior seria a desigualdade. Em suma, o Coeficiente de Gini mede exatamente razão entre a área hachurada desse abaulamento da curva (alfa) e a área do triângulo inferior no qual se insere a curva (OBC).

Fonte: Hoffmann (1998)

Quando a sociedade é perfeitamente igual, a curva coincide com a diagonal, a área hachurada é nula e o Coeficiente de Gini é 0. Em uma sociedade que tenha toda a sua renda concentrada nas mãos de poucos membros, a curva tenderá a colar nas retas OC e CB, a área alfa se aproximará à área do triângulo OBC e o Coeficiente tenderá a 1. Assim, sabemos que o Coeficiente de Gini varia de 0 a 1 e este valor é tanto maior, quanto maior for a desigualdade, como é de se esperar. Mas permanece a necessidade de melhor interpretação do significado de um valor de Gini, que não 0 ou 1. Sabemos avaliar comparativamente que o país que tem Gini de 0,7 tem desigualdade maior que um país de valor de Gini de 0,6. Porém, em valores absolutos, o que significa um valor de Gini de 0,7 ou, em termos percentuais, 70%?

Matematicamente, o Coeficiente de Gini mede a proporção entre as diferenças de renda entre todos os pares de membros da sociedade, e a média aritmética dessas rendas. No entanto, fugindo da formulação matemática, quase sempre cansativa e de difícil depreensão, há uma interpretação para o valor absoluto do Coeficiente de Gini pouco conhecida, porém bastante útil para compreender a magnitude de cada valor intermediário do índice. Ela utiliza uma técnica, chamada de processo de socialização parcial de Theil, para achar uma distribuição dual subjacente a partir da distribuição original. Não vamos reproduzir a técnica neste espaço, mas é importante conhecer o seu resultado prático.

Uma sociedade de Coeficiente de Gini de valor, por exemplo, de 70% significa, pela técnica acima, que ela é equivalente a uma sociedade que concentre toda a mesma renda nos 30% mais ricos, enquanto que os restantes 70% possuem renda nula. Ou seja, se pegássemos toda a renda dessa sociedade e a concentrássemos nos 30% mais ricos da população, deixando nada para os 70% mais pobres, o Coeficiente de Gini medido dessa nova distribuição hipotética seria igual a 70%, equivalente ao valor do coeficiente da distribuição original dessa sociedade.

Tome-se o exemplo do Coeficiente de Gini do Brasil de 54,3% para o ano de 2014, obtido do Ipeadata. A maioria das publicações que tratam de desigualdade apenas efetuam análises relativas: que o Brasil está entre os mais desiguais do mundo, que o Brasil só é melhor do que aquele ou outro país, ou que o Brasil é pior do que a grande maioria dos países na sua região. E o valor absoluto de 54,3%? O que significa esse patamar de desigualdade? Agora, pela interpretação apresentada neste texto, pode-se enriquecer a interpretação afirmando-se que a distribuição de renda do Brasil corresponde à distribuição hipotética de um país que tenha concentração tal que uma proporção de 54,3% da sociedade vive na indigência absoluta, ou seja, possui renda zero.

Ao nosso ver, essa forma de interpretar o Coeficiente de Gini aumenta a compreensão do índice e aprimora a comunicabilidade, que é propriedade desejável em qualquer indicador complexo.