Em novembro de 2017, o Banco Mundial publicou um
valoroso e amplo estudo sobre as atuais condições da sustentabilidade fiscal
brasileira. O relatório foi solicitado, à época, pelo Ministro da Fazenda
Joaquim Levy que desejava uma avaliação independente da situação brasileira.
Dada a amplitude do trabalho realizado e o grande conjunto de técnicos e
estudiosos consultados, o relatório foi finalizado somente dois anos depois.
Apesar de grande envergadura, a avaliação
efetuada pelo Banco Mundial centrou sua atenção nas possibilidades de redução
de gastos governamentais, sobretudo na esfera federal, abrangendo funcionalismo
público, compras governamentais, previdência social, proteção social, saúde,
educação e apoio governamental ao setor privado. Para isso, adotou como norte a
análise de eficiência da máquina governamental, buscando achar pontos de
redução de gastos, mas tendo em vista concomitantemente a questão da equidade
desses cortes, o que fez a equipe denominar o estudo como “Um Ajuste Justo”.
No que toca a temática deste blog, decidimos
realizar uma primeira análise do capítulo que trata da assistência social e da sua
integração com os programas para o mercado de trabalho, acrescentando-se a
aposentadoria rural, por ser não contributiva de fato.
O relatório afirma que o sistema brasileiro de
proteção social é um conjunto complexo de muitos programas que apresentam excessivos
gastos sociais, sobreposições com múltiplos benefícios por família, e
incentivos negativos, quanto às decisões previdenciárias e de mercado de
trabalho. As críticas são válidas, pois esse conjunto de programas emergiram na
história brasileira sem se realizar uma análise mais cuidadosa das eventuais
sobreposições, assim como, sem atentar para os impactos microeconômicos de incentivos
nos demais programas.
Especificamente, apontam um certo grau de sobreposição
da aposentadoria rural – que de aposentadoria tem muito pouco, pois o aspecto
contributivo é mitigado pelas menores exigências de comprovação – com o
Benefício de Prestação Continuada (BPC), conhecida como a “aposentadoria
social” e o desincentivo gerado por esses benefícios à contribuição ao regime
de previdência contributiva. Haveria também uma falta de coordenação entre
programas como o Bolsa Família, o Salário-Família e o Abono Salarial e a sobreposição
de programas como Seguro-Desemprego e Fundo de Garantia por Tempo de Serviço,
causando distorções no mercado de trabalho, como a excessiva rotatividade no
emprego.
Tendo em vista sempre o controle das contas
públicas, o Banco Mundial recomenda algumas medidas e realiza simulações de
redução de gastos de cada uma das proposições, de modo que, os ajustes apontados
nas contas relacionadas à assistência social e ao mercado de trabalho poderiam
alcançar até 2026 economias de até 1,3% do PIB, com repercussões positivas na
melhor distribuição dos benefícios.
A nosso ver, o trágico é que, embora possa haver
sobreposições desses programas, permanecem ainda muitas lacunas no atendimento
da população mais pobre e desprovida. Os desincentivos provocados nos sistemas
previdenciário e laboral são reais e conhecidos e estão ainda esperando
soluções, algumas que o Banco Mundial intenta em apresentar. Também, as
simulações do impacto fiscal do remanejamento de gastos são exercícios válidos
para otimizar orçamento. No entanto, o Banco não disponibiliza detalhes dos
dados e metodologia utilizados para alcançar os números apresentados no estudo,
de modo que prejudica uma análise mais apurada do trabalho.
Por outro lado, apesar da falta de maiores
detalhamentos do estudo, é possível examinar as conclusões do Banco sobre
progressividade dos programas no Brasil e verificar a sua visão a respeito.
Tomemos algumas assertivas ao longo do texto, tais como: “O BPC fornece
benefícios relativamente altos por
indivíduo, equivalentes a um salário mínimo (R$ 937 em 2017). Esse valor é mais
de três vezes superior ao benefício máximo concedido por família no âmbito do
Bolsa Família (R$ 280 em 2017)” e “os altos
níveis dos benefícios das aposentadorias não contributivas (BPC para idosos
e aposentadorias rurais)”. Isso mesmo! O Banco entende que um salário mínimo é um
valor alto para os benefícios sociais no Brasil. Acrescenta argumentações por
meio do gráfico que transcrevemos abaixo:
Com base no gráfico, a instituição conclui que
apenas o Bolsa Família e o Salário Família são progressivos, haja vista que os
correspondentes histogramas de incidência dos gastos por quintis (o quintil
divide a população por 5, representando cada um deles 20% da renda) são
decrescentes, demonstrando que as faixas de menores rendas é que recebem mais
de benefício do que as faixas mais altas de renda. Com base nessa análise
comparativa gráfica, o Banco também faz recomendações como de priorizar o
Salário Família em detrimento do Abono Salarial, haja vista que o primeiro é
mais progressivo do que o segundo. Nesta mesma linha, o Bolsa Família, por ser
progressivo, deveria servir de balizamento para outros benefícios, como
aposentadoria rural e o BPC.
Entretanto, o “demônio está nos detalhes” e,
quanto a isso, precisamos pormenorizar os resultados desse gráfico. Lembrando
que a desigualdade de renda no Brasil é perversa, sendo uma das maiores do
mundo, e que ela pode distorcer muitos estudos e resultados, vale buscar as
faixas de quintis de renda da população brasileira. Segundo o Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), baseado na Pesquisa Nacional de Amostra de
Domicílios (PNAD), em outubro de 2014, a média da renda domiciliar per capita nacional dos indivíduos de
cada décimo – não estão disponíveis por quintil – da população eram os seguintes:
Renda domiciliar per capita (R$ outubro 2014) - média
por décimo da população
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1
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2
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3
|
4
|
5
|
6
|
7
|
8
|
9
|
10
|
133,12
|
276,36
|
391,50
|
510,47
|
646,97
|
802,29
|
978,04
|
1270,94
|
1800,75
|
4711,91
|
Fonte:
IPEADATA. Elaboração própria.
Assim, o primeiro quintil vai de 0 a aproximadamente R$ 334,00 (média entre as rendas médias do 2o e 3o décimo); o segundo quintil, de R$ 334,00 a 579,00; o terceiro, de R$ 579,00 a 890,00; o quarto, de 890,00 a 1.536,00; e o quinto, acima dos R$ 1.536,00. Portanto, percebe-se que a tamanha desigualdade brasileira faz com que o último quintil contenha, apesar de agregar a parcela mais rica de população, domicílios com renda per capita pouco superiores ao salário mínimo, ou seja, rendas ainda muito baixas. Assim, não é absurdo que muitos dos programas elencados pelo Banco possuam beneficiários no quintil mais rico de renda de população, pois, nessas faixas desenhadas, há também pessoas com rendas bastante modestas e ainda dentro dos critérios de elegibilidade dos programas. O enorme nível de desigualdade brasileiro exige que o último quintil, o mais rico, conte com uma análise mais detalhada desse grupo tão heterogêneo, desmembrando-o em décimos ou mesmo em percentis. Fazendo-se isso, os histogramas do gráfico tratados pelo Banco certamente mudariam de perfil, levando a instituição a concluir que seriam programas progressivos não só o Bolsa Família e o Salário Familia, mas também outros, mesmo que em menor grau.
O problema do relatório são os ajustes propostos por conta dessa análise rápida e, por que não dizer, rasa por parte do Banco Mundial. Dada a premência da questão fiscal e o pretexto da equidade embarcada no estudo pelo Banco, sugere-se, como exemplo, que os benefícios da aposentadoria rural e do BPC, que pagam o salário mínimo, deveriam ser reduzidos aos valores médios do Bolsa Família, ou que, alternativamente, todos os benefícios deveriam ser definidos em 60% do salário mínimo, o que faria com que a aposentadoria rural e o BPC perdessem 40% do seu valor, enquanto que o Bolsa Família se elevaria. Dessa forma, segundo as simulações de gastos, atenderia a questão de redução de gastos, bem como, segundo o Banco, teria aspectos de equidades positivos, fazendo jus ao nome do relatório de “Um Ajuste Justo”.
Nesse último aspecto equitativo, por qual o Banco decidiu se enveredar para ganhar apoio ao seu relatório, o da justiça, é um dos assuntos mais polêmicos no desenvolvimento da humanidade, ao mesmo tempo que é comumente relegada pela Economia. Sem adentrar às teorias de justiça tratadas por várias escolas de pensamento (deixemos isso para outro post), é no mínimo muito polêmico que o Banco Mundial venha a apontar soluções para um “ajuste justo” que precise ocorrer entre as rendas dos mais pobres da população brasileira, sem a contribuição dos mais ricos. Por isso, indagamos: justo para quem? Quem ganha e quem perde com esse ajuste?
É importante reconhecer que neste relatório, ao invés de cortes e/ou remanejamentos de gastos, sobretudo sociais, o estudo também chega a vislumbrar como medida alternativa para restabelecer o equilíbrio fiscal a elevação de receitas tributárias, a exemplo de uma tributação que onere mais as classes mais ricas (impostos sobre a renda, patrimônio e ganhos de capital) e onere menos as mais pobres (impostos indiretos), da redução das operações quase-fiscais efetuadas pelos bancos públicos e da solução para os altos gastos da gestão da dívida pública e reservas internacionais. No entanto, essas medidas não passam de menção rápida sem maior aprofundamento no relatório, o qual considera que a redução de gastos, esse sim, é condição necessária para aplacar a dificuldade fiscal do Brasil, não podendo ser substituído por outras medidas econômicas menos ortodoxas.
Compreendemos que o ajuste pelo gasto é condição necessária, mas seria muito menos espartana contra os mais pobres, se contasse com a contribuição de ajustes que envolvessem os mais ricos, tornando o estudo mais equilibrado e merecedor da adjetivação dada ao relatório.
Que se louve a preocupação com a equidade e a menção, mesmo que ligeira, de temas espinhosos como tributação de classes mais altas e gerenciamento da dívida pública, mas esse comportamento não é suficiente para afastar a viés liberal, como não deixaria de ser, que marca essa instituição financeira internacional. Não obstante essa ausência de completa independência do Banco Mundial, o estudo é muito rico em diagnósticos e soluções para a celeuma de programas e políticas públicas no Brasil e, com os devidos cuidados, devem ser considerados em futuras modificações ou reformas na atuação do governo.
Mas, como bem sabemos, as decisões políticas
fazem uma escolha seletiva dos dados técnicos. Vamos observar a escolha do
governo brasileiro.
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