segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Um ajuste justo – será?

Em novembro de 2017, o Banco Mundial publicou um valoroso e amplo estudo sobre as atuais condições da sustentabilidade fiscal brasileira. O relatório foi solicitado, à época, pelo Ministro da Fazenda Joaquim Levy que desejava uma avaliação independente da situação brasileira. Dada a amplitude do trabalho realizado e o grande conjunto de técnicos e estudiosos consultados, o relatório foi finalizado somente dois anos depois.

Apesar de grande envergadura, a avaliação efetuada pelo Banco Mundial centrou sua atenção nas possibilidades de redução de gastos governamentais, sobretudo na esfera federal, abrangendo funcionalismo público, compras governamentais, previdência social, proteção social, saúde, educação e apoio governamental ao setor privado. Para isso, adotou como norte a análise de eficiência da máquina governamental, buscando achar pontos de redução de gastos, mas tendo em vista concomitantemente a questão da equidade desses cortes, o que fez a equipe denominar o estudo como “Um Ajuste Justo”.

No que toca a temática deste blog, decidimos realizar uma primeira análise do capítulo que trata da assistência social e da sua integração com os programas para o mercado de trabalho, acrescentando-se a aposentadoria rural, por ser não contributiva de fato.

O relatório afirma que o sistema brasileiro de proteção social é um conjunto complexo de muitos programas que apresentam excessivos gastos sociais, sobreposições com múltiplos benefícios por família, e incentivos negativos, quanto às decisões previdenciárias e de mercado de trabalho. As críticas são válidas, pois esse conjunto de programas emergiram na história brasileira sem se realizar uma análise mais cuidadosa das eventuais sobreposições, assim como, sem atentar para os impactos microeconômicos de incentivos nos demais programas.

Especificamente, apontam um certo grau de sobreposição da aposentadoria rural – que de aposentadoria tem muito pouco, pois o aspecto contributivo é mitigado pelas menores exigências de comprovação – com o Benefício de Prestação Continuada (BPC), conhecida como a “aposentadoria social” e o desincentivo gerado por esses benefícios à contribuição ao regime de previdência contributiva. Haveria também uma falta de coordenação entre programas como o Bolsa Família, o Salário-Família e o Abono Salarial e a sobreposição de programas como Seguro-Desemprego e Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, causando distorções no mercado de trabalho, como a excessiva rotatividade no emprego.

Tendo em vista sempre o controle das contas públicas, o Banco Mundial recomenda algumas medidas e realiza simulações de redução de gastos de cada uma das proposições, de modo que, os ajustes apontados nas contas relacionadas à assistência social e ao mercado de trabalho poderiam alcançar até 2026 economias de até 1,3% do PIB, com repercussões positivas na melhor distribuição dos benefícios.

A nosso ver, o trágico é que, embora possa haver sobreposições desses programas, permanecem ainda muitas lacunas no atendimento da população mais pobre e desprovida. Os desincentivos provocados nos sistemas previdenciário e laboral são reais e conhecidos e estão ainda esperando soluções, algumas que o Banco Mundial intenta em apresentar. Também, as simulações do impacto fiscal do remanejamento de gastos são exercícios válidos para otimizar orçamento. No entanto, o Banco não disponibiliza detalhes dos dados e metodologia utilizados para alcançar os números apresentados no estudo, de modo que prejudica uma análise mais apurada do trabalho.

Por outro lado, apesar da falta de maiores detalhamentos do estudo, é possível examinar as conclusões do Banco sobre progressividade dos programas no Brasil e verificar a sua visão a respeito. Tomemos algumas assertivas ao longo do texto, tais como: “O BPC fornece benefícios relativamente altos por indivíduo, equivalentes a um salário mínimo (R$ 937 em 2017). Esse valor é mais de três vezes superior ao benefício máximo concedido por família no âmbito do Bolsa Família (R$ 280 em 2017)” e “os altos níveis dos benefícios das aposentadorias não contributivas (BPC para idosos e aposentadorias rurais)”. Isso mesmo! O Banco entende que um salário mínimo é um valor alto para os benefícios sociais no Brasil. Acrescenta argumentações por meio do gráfico que transcrevemos abaixo:

Com base no gráfico, a instituição conclui que apenas o Bolsa Família e o Salário Família são progressivos, haja vista que os correspondentes histogramas de incidência dos gastos por quintis (o quintil divide a população por 5, representando cada um deles 20% da renda) são decrescentes, demonstrando que as faixas de menores rendas é que recebem mais de benefício do que as faixas mais altas de renda. Com base nessa análise comparativa gráfica, o Banco também faz recomendações como de priorizar o Salário Família em detrimento do Abono Salarial, haja vista que o primeiro é mais progressivo do que o segundo. Nesta mesma linha, o Bolsa Família, por ser progressivo, deveria servir de balizamento para outros benefícios, como aposentadoria rural e o BPC.

Entretanto, o “demônio está nos detalhes” e, quanto a isso, precisamos pormenorizar os resultados desse gráfico. Lembrando que a desigualdade de renda no Brasil é perversa, sendo uma das maiores do mundo, e que ela pode distorcer muitos estudos e resultados, vale buscar as faixas de quintis de renda da população brasileira. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), baseado na Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (PNAD), em outubro de 2014, a média da renda domiciliar per capita nacional dos indivíduos de cada décimo – não estão disponíveis por quintil –  da população eram os seguintes:
Renda domiciliar per capita (R$ outubro 2014) - média por décimo da população
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
133,12
276,36
391,50
510,47
646,97
802,29
978,04
1270,94
1800,75
4711,91
Fonte: IPEADATA. Elaboração própria.

Assim, o primeiro quintil vai de 0 a aproximadamente R$ 334,00 (média entre as rendas médias do 2o e 3o décimo); o segundo quintil, de R$ 334,00 a 579,00; o terceiro, de R$ 579,00 a 890,00; o quarto, de 890,00 a 1.536,00; e o quinto, acima dos R$ 1.536,00. Portanto, percebe-se que a tamanha desigualdade brasileira faz com que o último quintil contenha, apesar de agregar a parcela mais rica de população, domicílios com renda per capita pouco superiores ao salário mínimo, ou seja, rendas ainda muito baixas. Assim, não é absurdo que muitos dos programas elencados pelo Banco possuam beneficiários no quintil mais rico de renda de população, pois, nessas faixas desenhadas, há também pessoas com rendas bastante modestas e ainda dentro dos critérios de elegibilidade dos programas. O enorme nível de desigualdade brasileiro exige que o último quintil, o mais rico, conte com uma análise mais detalhada desse grupo tão heterogêneo, desmembrando-o em décimos ou mesmo em percentis. Fazendo-se isso, os histogramas do gráfico tratados pelo Banco certamente mudariam de perfil, levando a instituição a concluir que seriam programas progressivos não só o Bolsa Família e o Salário Familia, mas também outros, mesmo que em menor grau.

O problema do relatório são os ajustes propostos por conta dessa análise rápida e, por que não dizer, rasa por parte do Banco Mundial. Dada a premência da questão fiscal e o pretexto da equidade embarcada no estudo pelo Banco, sugere-se, como exemplo, que os benefícios da aposentadoria rural e do BPC, que pagam o salário mínimo, deveriam ser reduzidos aos valores médios do Bolsa Família, ou que, alternativamente, todos os benefícios deveriam ser definidos em 60% do salário mínimo, o que faria com que a aposentadoria rural e o BPC perdessem 40% do seu valor, enquanto que o Bolsa Família se elevaria. Dessa forma, segundo as simulações de gastos, atenderia a questão de redução de gastos, bem como, segundo o Banco, teria aspectos de equidades positivos, fazendo jus ao nome do relatório de “Um Ajuste Justo”.

Nesse último aspecto equitativo, por qual o Banco decidiu se enveredar para ganhar apoio ao seu relatório, o da justiça, é um dos assuntos mais polêmicos no desenvolvimento da humanidade, ao mesmo tempo que é comumente relegada pela Economia. Sem adentrar às teorias de justiça tratadas por várias escolas de pensamento (deixemos isso para outro post), é no mínimo muito polêmico que o Banco Mundial venha a apontar soluções para um “ajuste justo” que precise ocorrer entre as rendas dos mais pobres da população brasileira, sem a contribuição dos mais ricos. Por isso, indagamos: justo para quem? Quem ganha e quem perde com esse ajuste?

É importante reconhecer que neste relatório, ao invés de cortes e/ou remanejamentos de gastos, sobretudo sociais, o estudo também chega a vislumbrar como medida alternativa para restabelecer o equilíbrio fiscal a elevação de receitas tributárias, a exemplo de uma tributação que onere mais as classes mais ricas (impostos sobre a renda, patrimônio e ganhos de  capital) e onere menos as mais pobres (impostos indiretos), da redução das operações quase-fiscais efetuadas pelos bancos públicos e da solução para os altos gastos da gestão da dívida pública e reservas internacionais. No entanto, essas medidas não passam de menção rápida sem maior aprofundamento no relatório, o qual considera que a redução de gastos, esse sim, é condição necessária para aplacar a dificuldade fiscal do Brasil, não podendo ser substituído por outras medidas econômicas menos ortodoxas.  

Compreendemos que o ajuste pelo gasto é condição necessária, mas seria muito menos espartana contra os mais pobres, se contasse com a contribuição de ajustes que envolvessem os mais ricos, tornando o estudo mais equilibrado e merecedor da adjetivação dada ao relatório.

Que se louve a preocupação com a equidade e a menção, mesmo que ligeira, de temas espinhosos como tributação de classes mais altas e gerenciamento da dívida pública, mas esse comportamento não é suficiente para afastar a viés liberal, como não deixaria de ser, que marca essa instituição financeira internacional. Não obstante essa ausência de completa independência do Banco Mundial, o estudo é muito rico em diagnósticos e soluções para a celeuma de programas e políticas públicas no Brasil e, com os devidos cuidados, devem ser considerados em futuras modificações ou reformas na atuação do governo.

Mas, como bem sabemos, as decisões políticas fazem uma escolha seletiva dos dados técnicos. Vamos observar a escolha do governo brasileiro.

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