O vídeo anexo a este texto é um quadro famoso de um programa humorístico
na década de 80: Primo Pobre e Primo Rico. Outro personagem inesquecível era o
do político Justo Veríssimo, na pele de Chico Anísio, que destratava os seus
eleitores, sobretudo os mais pobres, com o repetido bordão: Odeio pobre! Poderia
encontrar muitos outros vídeos, áudios, músicas a demonstrar a situação
dramática de desigualdade da sociedade brasileira, que pouco mudou nesses anos
todos, à exceção de ter deixado de ser algo engraçado e ter se tornado assunto
mais sério, na esteira da onda do politicamente correto e das imperiosas
necessidades de desenvolvimento social.
O relatório da Oxfam “A Distância que nos une: um retrato das
desigualdades brasileiras”, publicado nesta semana, descreve a situação
desastrosa da nossa distribuição de renda, riqueza e acesso a serviços
essenciais. Dos tempos dos registros humorísticos acima ao presente, os
indicadores de desigualdade e pobreza melhoraram, digamos, alguma coisa. Mas,
partindo-se de um patamar muito extremo de injustiça social, os avanços foram
insuficientes para quebrar a estrutura histórica de desigualdade no Brasil.
Dessa forma, a Oxfam trata com relevo alguns indicadores sociais no
Brasil. Segundo a entidade, no início de 2017, os seis maiores bilionários do
País reuniam riqueza equivalente à metade mais pobre da população. Os 5% mais
ricos recebem o mesmo que os demais 95% da população. Portanto, é claro que a
desigualdade brasileira é excessiva, resultado de um passado escravagista e
colonial, bem como de anos de políticas preocupadas prioritariamente com o lado
econômico, onde beneficiava um pequeno conjunto da população.
E realmente, a Economia, ao menos a tradicional, parece fazer pouco caso
com a questão da desigualdade. Nas suas teorias clássicas, o aspecto da justiça
social é relegado a segundo plano perante ao da eficiência. Se a desigualdade é
raramente considerada nos modelos econômicos, não há como se analisar as
repercussões diferenciadas que esses modelos poderão ter sobre a sociedade.
Nos poucos espaços em que a Economia trata de diferenciar efeitos entre
indivíduos, a filosofia que lhe embala é a lógica da eficiência de Pareto. De
acordo com esse princípio, se houver uma maneira de melhorar a situação de
alguém sem prejudicar a de outros, a sociedade ganhará como um todo. Portanto,
por que nos preocuparmos com ricos ganhando muito e pobres ganhando pouco, mas o
suficiente, se a sociedade está se tornando melhor no geral? Desde que os mais
pobres tenham suas necessidades atendidas, do que importaria o aumento da
desigualdade? Não bastaria o combate à pobreza para erradicar as mazelas
sociais? Saindo do ramo da Economia tradicional, alguns poderiam apontar para o
espírito invejoso humano para explicar essa preocupação exacerbada com a
riqueza do outro.
Todavia, o tema é mais complicado do que parece e extrapola o senso
comum. Alguns economistas progressistas, como Angus Deaton, acreditam que a
extrema desigualdade dos nossos tempos é fruto do progresso da humanidade nos
últimos 200 anos, em razão das revoluções industrial, alimentar e sanitária.
Este economista defende que o avanço da desigualdade acarretou o acúmulo de
condições materiais pela elite, o que a possibilitou inicialmente investir,
inovar e acessar descobertas, tais como as vacinas, remédios e equipamentos. O
autor ressalta ainda que isso foi fundamental para redução da pobreza
posteriormente, pois essas conquistas alcançaram a maior parte da população,
mesmo que com uma certa defasagem. Então, a desigualdade acabou proporcionando
a redução da pobreza em um segundo momento. Nesse ponto, discordamos do
relatório da Oxfam que afirma que “não é possível erradicar a pobreza no mundo
sem reduzir drasticamente os níveis de desigualdade”.
Logo, devemos repetir a indagação: não seria suficiente concentrarmo-nos
na pobreza, podendo desprezar a desigualdade, dado que esta pode não
necessariamente causar aquela? A resposta é não, pois há estudiosos que pensam
contrariamente. Como exemplo, os economistas Alberto Alesina e Dani Rodrik
defendem que sociedades mais igualitárias crescem mais economicamente
aumentando ainda mais o bem-estar social. O mecanismo que explica isso é o de que
a riqueza dividida desigualmente em uma sociedade causa insatisfação em quem
não tem capital acumulado, indivíduos que acabam exigindo mais políticas
distributivas que devem ser pagas com mais impostos sobre o capital acumulado,
que por sua vez, reduz o crescimento econômico. É uma tese que encontra o contraexemplo
nos países nórdicos, como a Suécia, que possuem alta carga tributária, mas
ainda assim apresentam um crescimento significativo.
Nesse cenário de divergência entre as teorias, parece-nos, no entanto,
ser consensual que níveis de desigualdade exagerados têm indubitavelmente
efeitos negativos nas sociedades que as têm. A desigualdade, quando extrema,
como o é no Brasil, pode gerar disfunções econômicas, sociais e políticas, pois
há entraves para elevação da produtividade, problemas de segurança e violência
e captura política pela classe dominante que mantém o status quo dos seus privilégios, tornando a temática ora discutida
em agenda eleitoreira, sem compromisso programático.
A Oxfam, cuja importante missão é o combate à desigualdade no mundo, obviamente
apresenta propostas que são complementares àquelas listadas pelo Banco Mundial
no seu relatório “Um Ajuste Justo” (ver post anterior). A agenda proposta pela
entidade envolve algumas medidas. Destacamos uma reforma tributária que diminua
a incidência de tributos indiretos e aumente a dos diretos, que eleve o peso da
tributação sobre o patrimônio, que aumente a progressividade do imposto de
renda pessoa física e que elimine os juros sobre capital próprio e a isenção
sobre lucros e dividendos. Todas essas medidas tributárias onerariam os ricos e
aliviariam a carga tributária sobre os pobres.
No entanto, temos de considerar os prováveis efeitos econômicos
desfavoráveis dessa maior carga tributária sobre a elite, o empresariado e o
investidor, em um mundo com ampla mobilidade de capital em que países competem
por atração de recursos. Medidas como essas poderiam gerar forte fuga de
capitais e paralisação dos investimentos internos. Sem falar, que a pressão
política seria enorme. E nós sabemos bem o que aconteceria depois.
Também, a Oxfam defende a expansão dos gastos públicos em educação,
saúde, assistência social, saneamento, habitação e transporte público,
inclusive sugerindo uma revisão da emenda do teto de gastos.
Em nossa opinião, a crise fiscal por que passa o Brasil impede que se
desprezem cortes de gastos para o alcance de um ajuste eficaz. Certamente, a
Oxfam deve ter considerado que os recursos para a expansão dos gastos sociais
viriam da reforma tributária proposta, mas sem considerar os seus efeitos colaterais
negativos. Vale lembra aqui também a visão antagônica da
Oxfam, que afirma que os programas de assistência social são altamente
progressivos, em relação a do Banco Mundial que opinou contrariamente em seu relatório (ver post anterior). Isso demonstra que avaliações de progressividade das políticas
públicas dependem muito da visão e interesse do avaliador. Todo cuidado é pouco!
Para tanto, fiquemos atentos!
Por último, a Oxfam destaca a necessidade de uma reforma política proposta
que aumente o acesso da população ao sistema político e limite a excessiva
influência das elites sobre a produção e implementação de políticas públicas.
Lembremos que a desigualdade no Brasil extrapola a renda. Segundo Amartya Sen, a
desigualdade de participação política e a vagarosa renovação política
certamente tem influência direta sobre as escolhas das políticas públicas e sobre
a decisão pela manutenção do status quo.
Quanto menos conflitos entre os grupos com poder de decisão, maiores são as
chances de permanecer tudo como está.
As distorções tributária e política brasileiras são bem conhecidas e, quanto a isso, não há como por discordância no assunto. Não há nada de inovador
nas proposições apresentadas pela Oxfam, inclusive algumas delas já se
encontram presente na agenda de alguns presidenciáveis. A grande dificuldade
está no detalhamento de como realizar as reformas necessárias, no qual a Oxfam
não avança, diferentemente do Banco Mundial (ver post anterior), que detalha as
suas propostas de reforma, apesar de muitos diagnósticos controversos.
Certamente, o maior desafio reside na estratégia para vencer a
resistência dos que sairão perdendo com as mudanças. Isso remete para a mais
importante de todas as reformas, que é a política, a única que pode possibilitar
uma representação política mais equilibrada de forma a impingir reformas que
combinem adequadamente ganhos e perdas entre todos os grupos da sociedade
brasileira. As proposições sobre as mudanças necessárias precisam ser
construídas a partir de um intenso debate, de forma participativa e propositiva,
envolvendo toda a sociedade. Precisa ser uma agenda estratégica e prioritária
do estado brasileiro.
O desafio está posto. E está posto há décadas, sendo naturalizado e
invisibilizado por muitos. A distância entre ricos e pobres precisa ser diminuída,
não com a redução drástica da renda, onde todos passem a ser pobres, mas na
busca de um equilíbrio justo para todos! Equação difícil, mas necessária!
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