quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Oxfam: diagnóstico correto e prescrição incompleta




O vídeo anexo a este texto é um quadro famoso de um programa humorístico na década de 80: Primo Pobre e Primo Rico. Outro personagem inesquecível era o do político Justo Veríssimo, na pele de Chico Anísio, que destratava os seus eleitores, sobretudo os mais pobres, com o repetido bordão: Odeio pobre! Poderia encontrar muitos outros vídeos, áudios, músicas a demonstrar a situação dramática de desigualdade da sociedade brasileira, que pouco mudou nesses anos todos, à exceção de ter deixado de ser algo engraçado e ter se tornado assunto mais sério, na esteira da onda do politicamente correto e das imperiosas necessidades de desenvolvimento social.

O relatório da Oxfam “A Distância que nos une: um retrato das desigualdades brasileiras”, publicado nesta semana, descreve a situação desastrosa da nossa distribuição de renda, riqueza e acesso a serviços essenciais. Dos tempos dos registros humorísticos acima ao presente, os indicadores de desigualdade e pobreza melhoraram, digamos, alguma coisa. Mas, partindo-se de um patamar muito extremo de injustiça social, os avanços foram insuficientes para quebrar a estrutura histórica de desigualdade no Brasil.

Dessa forma, a Oxfam trata com relevo alguns indicadores sociais no Brasil. Segundo a entidade, no início de 2017, os seis maiores bilionários do País reuniam riqueza equivalente à metade mais pobre da população. Os 5% mais ricos recebem o mesmo que os demais 95% da população. Portanto, é claro que a desigualdade brasileira é excessiva, resultado de um passado escravagista e colonial, bem como de anos de políticas preocupadas prioritariamente com o lado econômico, onde beneficiava um pequeno conjunto da população.

E realmente, a Economia, ao menos a tradicional, parece fazer pouco caso com a questão da desigualdade. Nas suas teorias clássicas, o aspecto da justiça social é relegado a segundo plano perante ao da eficiência. Se a desigualdade é raramente considerada nos modelos econômicos, não há como se analisar as repercussões diferenciadas que esses modelos poderão ter sobre a sociedade.

Nos poucos espaços em que a Economia trata de diferenciar efeitos entre indivíduos, a filosofia que lhe embala é a lógica da eficiência de Pareto. De acordo com esse princípio, se houver uma maneira de melhorar a situação de alguém sem prejudicar a de outros, a sociedade ganhará como um todo. Portanto, por que nos preocuparmos com ricos ganhando muito e pobres ganhando pouco, mas o suficiente, se a sociedade está se tornando melhor no geral? Desde que os mais pobres tenham suas necessidades atendidas, do que importaria o aumento da desigualdade? Não bastaria o combate à pobreza para erradicar as mazelas sociais? Saindo do ramo da Economia tradicional, alguns poderiam apontar para o espírito invejoso humano para explicar essa preocupação exacerbada com a riqueza do outro.

Todavia, o tema é mais complicado do que parece e extrapola o senso comum. Alguns economistas progressistas, como Angus Deaton, acreditam que a extrema desigualdade dos nossos tempos é fruto do progresso da humanidade nos últimos 200 anos, em razão das revoluções industrial, alimentar e sanitária. Este economista defende que o avanço da desigualdade acarretou o acúmulo de condições materiais pela elite, o que a possibilitou inicialmente investir, inovar e acessar descobertas, tais como as vacinas, remédios e equipamentos. O autor ressalta ainda que isso foi fundamental para redução da pobreza posteriormente, pois essas conquistas alcançaram a maior parte da população, mesmo que com uma certa defasagem. Então, a desigualdade acabou proporcionando a redução da pobreza em um segundo momento. Nesse ponto, discordamos do relatório da Oxfam que afirma que “não é possível erradicar a pobreza no mundo sem reduzir drasticamente os níveis de desigualdade”.

Logo, devemos repetir a indagação: não seria suficiente concentrarmo-nos na pobreza, podendo desprezar a desigualdade, dado que esta pode não necessariamente causar aquela? A resposta é não, pois há estudiosos que pensam contrariamente. Como exemplo, os economistas Alberto Alesina e Dani Rodrik defendem que sociedades mais igualitárias crescem mais economicamente aumentando ainda mais o bem-estar social. O mecanismo que explica isso é o de que a riqueza dividida desigualmente em uma sociedade causa insatisfação em quem não tem capital acumulado, indivíduos que acabam exigindo mais políticas distributivas que devem ser pagas com mais impostos sobre o capital acumulado, que por sua vez, reduz o crescimento econômico. É uma tese que encontra o contraexemplo nos países nórdicos, como a Suécia, que possuem alta carga tributária, mas ainda assim apresentam um crescimento significativo.

Nesse cenário de divergência entre as teorias, parece-nos, no entanto, ser consensual que níveis de desigualdade exagerados têm indubitavelmente efeitos negativos nas sociedades que as têm. A desigualdade, quando extrema, como o é no Brasil, pode gerar disfunções econômicas, sociais e políticas, pois há entraves para elevação da produtividade, problemas de segurança e violência e captura política pela classe dominante que mantém o status quo dos seus privilégios, tornando a temática ora discutida em agenda eleitoreira, sem compromisso programático.

A Oxfam, cuja importante missão é o combate à desigualdade no mundo, obviamente apresenta propostas que são complementares àquelas listadas pelo Banco Mundial no seu relatório “Um Ajuste Justo” (ver post anterior). A agenda proposta pela entidade envolve algumas medidas. Destacamos uma reforma tributária que diminua a incidência de tributos indiretos e aumente a dos diretos, que eleve o peso da tributação sobre o patrimônio, que aumente a progressividade do imposto de renda pessoa física e que elimine os juros sobre capital próprio e a isenção sobre lucros e dividendos. Todas essas medidas tributárias onerariam os ricos e aliviariam a carga tributária sobre os pobres.

No entanto, temos de considerar os prováveis efeitos econômicos desfavoráveis dessa maior carga tributária sobre a elite, o empresariado e o investidor, em um mundo com ampla mobilidade de capital em que países competem por atração de recursos. Medidas como essas poderiam gerar forte fuga de capitais e paralisação dos investimentos internos. Sem falar, que a pressão política seria enorme. E nós sabemos bem o que aconteceria depois.

Também, a Oxfam defende a expansão dos gastos públicos em educação, saúde, assistência social, saneamento, habitação e transporte público, inclusive sugerindo uma revisão da emenda do teto de gastos.

Em nossa opinião, a crise fiscal por que passa o Brasil impede que se desprezem cortes de gastos para o alcance de um ajuste eficaz. Certamente, a Oxfam deve ter considerado que os recursos para a expansão dos gastos sociais viriam da reforma tributária proposta, mas sem considerar os seus efeitos colaterais negativos. Vale lembra aqui também a visão antagônica da Oxfam, que afirma que os programas de assistência social são altamente progressivos, em relação a do Banco Mundial  que opinou contrariamente em seu relatório (ver post anterior). Isso demonstra que avaliações de progressividade das políticas públicas dependem muito da visão e interesse do avaliador. Todo cuidado é pouco! Para tanto, fiquemos atentos!

Por último, a Oxfam destaca a necessidade de uma reforma política proposta que aumente o acesso da população ao sistema político e limite a excessiva influência das elites sobre a produção e implementação de políticas públicas. Lembremos que a desigualdade no Brasil extrapola a renda. Segundo Amartya Sen, a desigualdade de participação política e a vagarosa renovação política certamente tem influência direta sobre as escolhas das políticas públicas e sobre a decisão pela manutenção do status quo. Quanto menos conflitos entre os grupos com poder de decisão, maiores são as chances de permanecer tudo como está.

As distorções tributária e política brasileiras são bem conhecidas e, quanto a isso, não há como por discordância no assunto. Não há nada de inovador nas proposições apresentadas pela Oxfam, inclusive algumas delas já se encontram presente na agenda de alguns presidenciáveis. A grande dificuldade está no detalhamento de como realizar as reformas necessárias, no qual a Oxfam não avança, diferentemente do Banco Mundial (ver post anterior), que detalha as suas propostas de reforma, apesar de muitos diagnósticos controversos.

Certamente, o maior desafio reside na estratégia para vencer a resistência dos que sairão perdendo com as mudanças. Isso remete para a mais importante de todas as reformas, que é a política, a única que pode possibilitar uma representação política mais equilibrada de forma a impingir reformas que combinem adequadamente ganhos e perdas entre todos os grupos da sociedade brasileira. As proposições sobre as mudanças necessárias precisam ser construídas a partir de um intenso debate, de forma participativa e propositiva, envolvendo toda a sociedade. Precisa ser uma agenda estratégica e prioritária do estado brasileiro.


O desafio está posto. E está posto há décadas, sendo naturalizado e invisibilizado por muitos. A distância entre ricos e pobres precisa ser diminuída, não com a redução drástica da renda, onde todos passem a ser pobres, mas na busca de um equilíbrio justo para todos! Equação difícil, mas necessária!

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