quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

O Índice de Desenvolvimento Inclusivo (IDI) de Davos

O Produto Interno Bruto, mais conhecido pela sigla PIB, tornou-se a medida de referência para o crescimento econômico, desde que o economista bielorrusso Simon Kuznets propusera, nos idos anos 30, o sistema de contabilidade das contas nacionais, de modo a estimar a produção anual de riquezas de países. Mais que isso, sendo um indicador hegemônico de mensuração econômica, passou a ser utilizado como proxy para a evolução do bem-estar. O PIB serviu, inclusive, para propósitos de avaliação de desenvolvimento de países, elegendo governos com agenda pró-crescimento e, inclusive, derrubando governos que fracassassem nesse objetivo.

Acontece que nem o PIB nem o PIB per capita deram conta de descrever o desenvolvimento em muitos países, dado que era plenamente factível um país crescer economicamente, mas distribuindo essa riqueza de modo muito desigual. Naturalmente, o PIB tem suas limitações de origem, já que não foi criado para medir desenvolvimento, mas sim crescimento. Sendo assim, não podemos cobrar algo que ele não tinha nenhuma obrigação de fazer.

Nessa esteira, é que surgiram concepções de novos indicadores, a exemplo do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) das Nações Unidas e do Índice para uma Vida Melhor da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, estes sim indicadores de bem-estar.

O que o Fórum Econômico Mundial fez, na semana passada em Davos, foi introduzir mais uma alternativa aos demais indicadores de bem-estar, o Índice de Desenvolvimento Inclusivo (IDI) (https://www.weforum.org/reports/the-inclusive-development-index-2018), que ainda está em teste. Ao tradicional PIB per capita, juntaram-se outros onze indicadores subdivididos em três dimensões: 1) Crescimento e desenvolvimento, 2) Inclusão e 3) Equidade e sustentabilidade intergeracionais.



Na proposta de Davos, há indicadores que diversificam a visão de desenvolvimento ortodoxa praticada por esse fórum anual, encarado como o símbolo do capitalismo mundial na atualidade. O grande impacto do índice reside na dimensão Inclusão, que reúne indicadores de distribuições da renda e de riqueza nacionais: o Gini da renda líquida, o Gini da riqueza, a Taxa de pobreza e a Renda mediana familiar. Nesse mesmo sentido de abertura, essa iniciativa contempla indicadores de Taxa de Ocupação no mercado de trabalho e de Expectativa de vida saudável, que representam também uma preocupação social, mas, desta vez, inseridos na dimensão de Crescimento e desenvolvimento. Também, inova com indicadores ambientais, tais como, a Poupança líquida ajustada e a Intensidade de carbono. Por outro lado, alinhado ao seu permanente viés econômico, o Fórum reafirma a importância do PIB per capita, da Produtividade do trabalho, da Dívida pública e da Razão de dependência.

Essas escolhas confirmam que a desigualdade e o desequilíbrio ambiental têm preocupado não só organizações humanitárias, como também organismos antes considerados insensíveis a essas causas. Afinal de contas, as desigualdades, quando exacerbadas, acabam por prejudicar o próprio crescimento econômico, e as questões ambientais podem comprometer o futuro da humanidade. Não acreditamos que seja um artifício para satisfazer opositores ao Fórum Econômico, mas antes uma tendência que já temos visto em organismos internacionais. Com essa iniciativa, o IDI adota também como filosofia o tripé – econômico, social e ambiental – preconizado pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), agenda criada pelas Nações Unidas visando melhorar as condições de vida do planeta em 2030.

Os resultados do IDI são apresentados em dois grupos separados de países, as economias avançadas e as emergentes. O Brasil encontra-se em 37° entre os 74 países emergentes. A sua avaliação é elevada pela boa performance na dimensão de equidade e sustentabilidade intergeracionais, com uma economia de baixo carbono e uma favorável razão de dependência, enquanto que vai muito mal nos indicadores da dimensão de inclusão, como os Ginis de riqueza e renda, e razoável nos indicadores da dimensão de crescimento e desenvolvimento. Comparativamente, encontramo-nos após muitos países latino-americanos, como Panamá (6°), Uruguai (8°), Chile (9°), Costa Rica (12°), Peru (14°), Paraguai (20°), Argentina (23°), México (24°), Nicarágua (29°), Colômbia (30°) e El Salvador (35°). Entre os BRICS, o país estaria em uma posição intermediária, entre Rússia (19°), China (26°), Índia (62°) e África do Sul (69°). O Brasil se posicionaria em 65° entre os 103 países medidos, caso os grupos fossem juntados. Caso possa essa junção, merece indagarmos a razão de se criarem dois grupos separados, quando a metodologia parece única.

Levando-se em conta que os índices multidimensionais exigem cuidados relacionados à composição dos seus indicadores individuais, alguns detalhamentos precisam ser elucidados no cálculo do IDI. A primeira é como se dá a normalização de cada indicador. Ou seja, antes de aglutinar indicadores com unidades diversas, tais como valores monetários (como PIB per capita) ou temporais (como expectativa de vida), eles devem sofrer transformação de modo a se tornarem todos eles adimensionais, possibilitando a junção e obtenção do índice final. Tome-se o exemplo do IDH das Nações Unidas, que conjuga variáveis também distintas, como renda monetária e anos de expectativa de vida. Lá, normalizou-se a expectativa de vida de um país, tomando-se, após estudos, o mínimo de 20 anos e o máximo de 85 anos. Assim, um país que tenha 20 anos ou menos de expectativa de vida terá valor 0 para esse indicador e, caso tenha 85 anos ou mais, terá valor igual a 1. Portanto, o indicador de expectativa de vida não vale mais o seu valor original em anos, mas um valor normalizado entre 0 e 1, o que permite a agregação de indicadores tão distintos. Voltando ao IDI, o documento disponível não elucida como foram efetuadas essas normalizações, o que nos obriga a esperar por maiores informações em publicações posteriores.

A segunda questão diz respeito aos pesos atribuídos a cada indicador para compor o IDI final, fato que deve refletir a ordem de importância de cada indicador dentro da metodologia. Caso um indicador tenha peso igual ao dobro de outro indicador, o primeiro tem uma importância na composição do índice final equivalente ao dobro do peso dado ao último. Caso os pesos sejam iguais, não há preferência entre um ou outro e é a solução mais coerente, quando não se tem conhecimento da importância relativa entre eles. No IDH e em tantos outros índices multidimensionais, é estabelecido um peso igual  para os indicadores, fato que, até ser publicada a metodologia em melhores detalhes, acreditamos que tenha ocorrido também com o IDI.

A última questão matemática relativa ao IDI que levantamos é se a operação de junção dos indicadores é aditiva ou multiplicativa. Se for aditiva, significa que os indicadores têm caráter substitutivo, ou seja, um indicador de valor ruim pode ser compensado por um valor bom de outro indicador de igual magnitude. Já se a composição algébrica for multiplicativa, um valor ruim de um indicador acaba por dominar o valor do índice final, não ocorrendo que outro indicador de valor de mesma magnitude possa compensar o estrago causado pelo primeiro indicador.

Esses detalhes não são curiosidades apenas matemáticas, mas definições que revelam as preferências na metodologia, muitas vezes até mais que os doze indicadores já divulgados. Aí sim, poderemos analisar mais a fundo as decisões tomadas pelos formuladores do índice. O IDI, segundo vídeo de apresentação no site, será lançado para valer em abril deste ano, data em que esperamos que melhores informações sejam fornecidas para que possamos efetuar melhores análises. Vamos aguardar!

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Oxfam: diagnóstico correto e prescrição incompleta




O vídeo anexo a este texto é um quadro famoso de um programa humorístico na década de 80: Primo Pobre e Primo Rico. Outro personagem inesquecível era o do político Justo Veríssimo, na pele de Chico Anísio, que destratava os seus eleitores, sobretudo os mais pobres, com o repetido bordão: Odeio pobre! Poderia encontrar muitos outros vídeos, áudios, músicas a demonstrar a situação dramática de desigualdade da sociedade brasileira, que pouco mudou nesses anos todos, à exceção de ter deixado de ser algo engraçado e ter se tornado assunto mais sério, na esteira da onda do politicamente correto e das imperiosas necessidades de desenvolvimento social.

O relatório da Oxfam “A Distância que nos une: um retrato das desigualdades brasileiras”, publicado nesta semana, descreve a situação desastrosa da nossa distribuição de renda, riqueza e acesso a serviços essenciais. Dos tempos dos registros humorísticos acima ao presente, os indicadores de desigualdade e pobreza melhoraram, digamos, alguma coisa. Mas, partindo-se de um patamar muito extremo de injustiça social, os avanços foram insuficientes para quebrar a estrutura histórica de desigualdade no Brasil.

Dessa forma, a Oxfam trata com relevo alguns indicadores sociais no Brasil. Segundo a entidade, no início de 2017, os seis maiores bilionários do País reuniam riqueza equivalente à metade mais pobre da população. Os 5% mais ricos recebem o mesmo que os demais 95% da população. Portanto, é claro que a desigualdade brasileira é excessiva, resultado de um passado escravagista e colonial, bem como de anos de políticas preocupadas prioritariamente com o lado econômico, onde beneficiava um pequeno conjunto da população.

E realmente, a Economia, ao menos a tradicional, parece fazer pouco caso com a questão da desigualdade. Nas suas teorias clássicas, o aspecto da justiça social é relegado a segundo plano perante ao da eficiência. Se a desigualdade é raramente considerada nos modelos econômicos, não há como se analisar as repercussões diferenciadas que esses modelos poderão ter sobre a sociedade.

Nos poucos espaços em que a Economia trata de diferenciar efeitos entre indivíduos, a filosofia que lhe embala é a lógica da eficiência de Pareto. De acordo com esse princípio, se houver uma maneira de melhorar a situação de alguém sem prejudicar a de outros, a sociedade ganhará como um todo. Portanto, por que nos preocuparmos com ricos ganhando muito e pobres ganhando pouco, mas o suficiente, se a sociedade está se tornando melhor no geral? Desde que os mais pobres tenham suas necessidades atendidas, do que importaria o aumento da desigualdade? Não bastaria o combate à pobreza para erradicar as mazelas sociais? Saindo do ramo da Economia tradicional, alguns poderiam apontar para o espírito invejoso humano para explicar essa preocupação exacerbada com a riqueza do outro.

Todavia, o tema é mais complicado do que parece e extrapola o senso comum. Alguns economistas progressistas, como Angus Deaton, acreditam que a extrema desigualdade dos nossos tempos é fruto do progresso da humanidade nos últimos 200 anos, em razão das revoluções industrial, alimentar e sanitária. Este economista defende que o avanço da desigualdade acarretou o acúmulo de condições materiais pela elite, o que a possibilitou inicialmente investir, inovar e acessar descobertas, tais como as vacinas, remédios e equipamentos. O autor ressalta ainda que isso foi fundamental para redução da pobreza posteriormente, pois essas conquistas alcançaram a maior parte da população, mesmo que com uma certa defasagem. Então, a desigualdade acabou proporcionando a redução da pobreza em um segundo momento. Nesse ponto, discordamos do relatório da Oxfam que afirma que “não é possível erradicar a pobreza no mundo sem reduzir drasticamente os níveis de desigualdade”.

Logo, devemos repetir a indagação: não seria suficiente concentrarmo-nos na pobreza, podendo desprezar a desigualdade, dado que esta pode não necessariamente causar aquela? A resposta é não, pois há estudiosos que pensam contrariamente. Como exemplo, os economistas Alberto Alesina e Dani Rodrik defendem que sociedades mais igualitárias crescem mais economicamente aumentando ainda mais o bem-estar social. O mecanismo que explica isso é o de que a riqueza dividida desigualmente em uma sociedade causa insatisfação em quem não tem capital acumulado, indivíduos que acabam exigindo mais políticas distributivas que devem ser pagas com mais impostos sobre o capital acumulado, que por sua vez, reduz o crescimento econômico. É uma tese que encontra o contraexemplo nos países nórdicos, como a Suécia, que possuem alta carga tributária, mas ainda assim apresentam um crescimento significativo.

Nesse cenário de divergência entre as teorias, parece-nos, no entanto, ser consensual que níveis de desigualdade exagerados têm indubitavelmente efeitos negativos nas sociedades que as têm. A desigualdade, quando extrema, como o é no Brasil, pode gerar disfunções econômicas, sociais e políticas, pois há entraves para elevação da produtividade, problemas de segurança e violência e captura política pela classe dominante que mantém o status quo dos seus privilégios, tornando a temática ora discutida em agenda eleitoreira, sem compromisso programático.

A Oxfam, cuja importante missão é o combate à desigualdade no mundo, obviamente apresenta propostas que são complementares àquelas listadas pelo Banco Mundial no seu relatório “Um Ajuste Justo” (ver post anterior). A agenda proposta pela entidade envolve algumas medidas. Destacamos uma reforma tributária que diminua a incidência de tributos indiretos e aumente a dos diretos, que eleve o peso da tributação sobre o patrimônio, que aumente a progressividade do imposto de renda pessoa física e que elimine os juros sobre capital próprio e a isenção sobre lucros e dividendos. Todas essas medidas tributárias onerariam os ricos e aliviariam a carga tributária sobre os pobres.

No entanto, temos de considerar os prováveis efeitos econômicos desfavoráveis dessa maior carga tributária sobre a elite, o empresariado e o investidor, em um mundo com ampla mobilidade de capital em que países competem por atração de recursos. Medidas como essas poderiam gerar forte fuga de capitais e paralisação dos investimentos internos. Sem falar, que a pressão política seria enorme. E nós sabemos bem o que aconteceria depois.

Também, a Oxfam defende a expansão dos gastos públicos em educação, saúde, assistência social, saneamento, habitação e transporte público, inclusive sugerindo uma revisão da emenda do teto de gastos.

Em nossa opinião, a crise fiscal por que passa o Brasil impede que se desprezem cortes de gastos para o alcance de um ajuste eficaz. Certamente, a Oxfam deve ter considerado que os recursos para a expansão dos gastos sociais viriam da reforma tributária proposta, mas sem considerar os seus efeitos colaterais negativos. Vale lembra aqui também a visão antagônica da Oxfam, que afirma que os programas de assistência social são altamente progressivos, em relação a do Banco Mundial  que opinou contrariamente em seu relatório (ver post anterior). Isso demonstra que avaliações de progressividade das políticas públicas dependem muito da visão e interesse do avaliador. Todo cuidado é pouco! Para tanto, fiquemos atentos!

Por último, a Oxfam destaca a necessidade de uma reforma política proposta que aumente o acesso da população ao sistema político e limite a excessiva influência das elites sobre a produção e implementação de políticas públicas. Lembremos que a desigualdade no Brasil extrapola a renda. Segundo Amartya Sen, a desigualdade de participação política e a vagarosa renovação política certamente tem influência direta sobre as escolhas das políticas públicas e sobre a decisão pela manutenção do status quo. Quanto menos conflitos entre os grupos com poder de decisão, maiores são as chances de permanecer tudo como está.

As distorções tributária e política brasileiras são bem conhecidas e, quanto a isso, não há como por discordância no assunto. Não há nada de inovador nas proposições apresentadas pela Oxfam, inclusive algumas delas já se encontram presente na agenda de alguns presidenciáveis. A grande dificuldade está no detalhamento de como realizar as reformas necessárias, no qual a Oxfam não avança, diferentemente do Banco Mundial (ver post anterior), que detalha as suas propostas de reforma, apesar de muitos diagnósticos controversos.

Certamente, o maior desafio reside na estratégia para vencer a resistência dos que sairão perdendo com as mudanças. Isso remete para a mais importante de todas as reformas, que é a política, a única que pode possibilitar uma representação política mais equilibrada de forma a impingir reformas que combinem adequadamente ganhos e perdas entre todos os grupos da sociedade brasileira. As proposições sobre as mudanças necessárias precisam ser construídas a partir de um intenso debate, de forma participativa e propositiva, envolvendo toda a sociedade. Precisa ser uma agenda estratégica e prioritária do estado brasileiro.


O desafio está posto. E está posto há décadas, sendo naturalizado e invisibilizado por muitos. A distância entre ricos e pobres precisa ser diminuída, não com a redução drástica da renda, onde todos passem a ser pobres, mas na busca de um equilíbrio justo para todos! Equação difícil, mas necessária!

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Um ajuste justo – será?

Em novembro de 2017, o Banco Mundial publicou um valoroso e amplo estudo sobre as atuais condições da sustentabilidade fiscal brasileira. O relatório foi solicitado, à época, pelo Ministro da Fazenda Joaquim Levy que desejava uma avaliação independente da situação brasileira. Dada a amplitude do trabalho realizado e o grande conjunto de técnicos e estudiosos consultados, o relatório foi finalizado somente dois anos depois.

Apesar de grande envergadura, a avaliação efetuada pelo Banco Mundial centrou sua atenção nas possibilidades de redução de gastos governamentais, sobretudo na esfera federal, abrangendo funcionalismo público, compras governamentais, previdência social, proteção social, saúde, educação e apoio governamental ao setor privado. Para isso, adotou como norte a análise de eficiência da máquina governamental, buscando achar pontos de redução de gastos, mas tendo em vista concomitantemente a questão da equidade desses cortes, o que fez a equipe denominar o estudo como “Um Ajuste Justo”.

No que toca a temática deste blog, decidimos realizar uma primeira análise do capítulo que trata da assistência social e da sua integração com os programas para o mercado de trabalho, acrescentando-se a aposentadoria rural, por ser não contributiva de fato.

O relatório afirma que o sistema brasileiro de proteção social é um conjunto complexo de muitos programas que apresentam excessivos gastos sociais, sobreposições com múltiplos benefícios por família, e incentivos negativos, quanto às decisões previdenciárias e de mercado de trabalho. As críticas são válidas, pois esse conjunto de programas emergiram na história brasileira sem se realizar uma análise mais cuidadosa das eventuais sobreposições, assim como, sem atentar para os impactos microeconômicos de incentivos nos demais programas.

Especificamente, apontam um certo grau de sobreposição da aposentadoria rural – que de aposentadoria tem muito pouco, pois o aspecto contributivo é mitigado pelas menores exigências de comprovação – com o Benefício de Prestação Continuada (BPC), conhecida como a “aposentadoria social” e o desincentivo gerado por esses benefícios à contribuição ao regime de previdência contributiva. Haveria também uma falta de coordenação entre programas como o Bolsa Família, o Salário-Família e o Abono Salarial e a sobreposição de programas como Seguro-Desemprego e Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, causando distorções no mercado de trabalho, como a excessiva rotatividade no emprego.

Tendo em vista sempre o controle das contas públicas, o Banco Mundial recomenda algumas medidas e realiza simulações de redução de gastos de cada uma das proposições, de modo que, os ajustes apontados nas contas relacionadas à assistência social e ao mercado de trabalho poderiam alcançar até 2026 economias de até 1,3% do PIB, com repercussões positivas na melhor distribuição dos benefícios.

A nosso ver, o trágico é que, embora possa haver sobreposições desses programas, permanecem ainda muitas lacunas no atendimento da população mais pobre e desprovida. Os desincentivos provocados nos sistemas previdenciário e laboral são reais e conhecidos e estão ainda esperando soluções, algumas que o Banco Mundial intenta em apresentar. Também, as simulações do impacto fiscal do remanejamento de gastos são exercícios válidos para otimizar orçamento. No entanto, o Banco não disponibiliza detalhes dos dados e metodologia utilizados para alcançar os números apresentados no estudo, de modo que prejudica uma análise mais apurada do trabalho.

Por outro lado, apesar da falta de maiores detalhamentos do estudo, é possível examinar as conclusões do Banco sobre progressividade dos programas no Brasil e verificar a sua visão a respeito. Tomemos algumas assertivas ao longo do texto, tais como: “O BPC fornece benefícios relativamente altos por indivíduo, equivalentes a um salário mínimo (R$ 937 em 2017). Esse valor é mais de três vezes superior ao benefício máximo concedido por família no âmbito do Bolsa Família (R$ 280 em 2017)” e “os altos níveis dos benefícios das aposentadorias não contributivas (BPC para idosos e aposentadorias rurais)”. Isso mesmo! O Banco entende que um salário mínimo é um valor alto para os benefícios sociais no Brasil. Acrescenta argumentações por meio do gráfico que transcrevemos abaixo:

Com base no gráfico, a instituição conclui que apenas o Bolsa Família e o Salário Família são progressivos, haja vista que os correspondentes histogramas de incidência dos gastos por quintis (o quintil divide a população por 5, representando cada um deles 20% da renda) são decrescentes, demonstrando que as faixas de menores rendas é que recebem mais de benefício do que as faixas mais altas de renda. Com base nessa análise comparativa gráfica, o Banco também faz recomendações como de priorizar o Salário Família em detrimento do Abono Salarial, haja vista que o primeiro é mais progressivo do que o segundo. Nesta mesma linha, o Bolsa Família, por ser progressivo, deveria servir de balizamento para outros benefícios, como aposentadoria rural e o BPC.

Entretanto, o “demônio está nos detalhes” e, quanto a isso, precisamos pormenorizar os resultados desse gráfico. Lembrando que a desigualdade de renda no Brasil é perversa, sendo uma das maiores do mundo, e que ela pode distorcer muitos estudos e resultados, vale buscar as faixas de quintis de renda da população brasileira. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), baseado na Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (PNAD), em outubro de 2014, a média da renda domiciliar per capita nacional dos indivíduos de cada décimo – não estão disponíveis por quintil –  da população eram os seguintes:
Renda domiciliar per capita (R$ outubro 2014) - média por décimo da população
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
133,12
276,36
391,50
510,47
646,97
802,29
978,04
1270,94
1800,75
4711,91
Fonte: IPEADATA. Elaboração própria.

Assim, o primeiro quintil vai de 0 a aproximadamente R$ 334,00 (média entre as rendas médias do 2o e 3o décimo); o segundo quintil, de R$ 334,00 a 579,00; o terceiro, de R$ 579,00 a 890,00; o quarto, de 890,00 a 1.536,00; e o quinto, acima dos R$ 1.536,00. Portanto, percebe-se que a tamanha desigualdade brasileira faz com que o último quintil contenha, apesar de agregar a parcela mais rica de população, domicílios com renda per capita pouco superiores ao salário mínimo, ou seja, rendas ainda muito baixas. Assim, não é absurdo que muitos dos programas elencados pelo Banco possuam beneficiários no quintil mais rico de renda de população, pois, nessas faixas desenhadas, há também pessoas com rendas bastante modestas e ainda dentro dos critérios de elegibilidade dos programas. O enorme nível de desigualdade brasileiro exige que o último quintil, o mais rico, conte com uma análise mais detalhada desse grupo tão heterogêneo, desmembrando-o em décimos ou mesmo em percentis. Fazendo-se isso, os histogramas do gráfico tratados pelo Banco certamente mudariam de perfil, levando a instituição a concluir que seriam programas progressivos não só o Bolsa Família e o Salário Familia, mas também outros, mesmo que em menor grau.

O problema do relatório são os ajustes propostos por conta dessa análise rápida e, por que não dizer, rasa por parte do Banco Mundial. Dada a premência da questão fiscal e o pretexto da equidade embarcada no estudo pelo Banco, sugere-se, como exemplo, que os benefícios da aposentadoria rural e do BPC, que pagam o salário mínimo, deveriam ser reduzidos aos valores médios do Bolsa Família, ou que, alternativamente, todos os benefícios deveriam ser definidos em 60% do salário mínimo, o que faria com que a aposentadoria rural e o BPC perdessem 40% do seu valor, enquanto que o Bolsa Família se elevaria. Dessa forma, segundo as simulações de gastos, atenderia a questão de redução de gastos, bem como, segundo o Banco, teria aspectos de equidades positivos, fazendo jus ao nome do relatório de “Um Ajuste Justo”.

Nesse último aspecto equitativo, por qual o Banco decidiu se enveredar para ganhar apoio ao seu relatório, o da justiça, é um dos assuntos mais polêmicos no desenvolvimento da humanidade, ao mesmo tempo que é comumente relegada pela Economia. Sem adentrar às teorias de justiça tratadas por várias escolas de pensamento (deixemos isso para outro post), é no mínimo muito polêmico que o Banco Mundial venha a apontar soluções para um “ajuste justo” que precise ocorrer entre as rendas dos mais pobres da população brasileira, sem a contribuição dos mais ricos. Por isso, indagamos: justo para quem? Quem ganha e quem perde com esse ajuste?

É importante reconhecer que neste relatório, ao invés de cortes e/ou remanejamentos de gastos, sobretudo sociais, o estudo também chega a vislumbrar como medida alternativa para restabelecer o equilíbrio fiscal a elevação de receitas tributárias, a exemplo de uma tributação que onere mais as classes mais ricas (impostos sobre a renda, patrimônio e ganhos de  capital) e onere menos as mais pobres (impostos indiretos), da redução das operações quase-fiscais efetuadas pelos bancos públicos e da solução para os altos gastos da gestão da dívida pública e reservas internacionais. No entanto, essas medidas não passam de menção rápida sem maior aprofundamento no relatório, o qual considera que a redução de gastos, esse sim, é condição necessária para aplacar a dificuldade fiscal do Brasil, não podendo ser substituído por outras medidas econômicas menos ortodoxas.  

Compreendemos que o ajuste pelo gasto é condição necessária, mas seria muito menos espartana contra os mais pobres, se contasse com a contribuição de ajustes que envolvessem os mais ricos, tornando o estudo mais equilibrado e merecedor da adjetivação dada ao relatório.

Que se louve a preocupação com a equidade e a menção, mesmo que ligeira, de temas espinhosos como tributação de classes mais altas e gerenciamento da dívida pública, mas esse comportamento não é suficiente para afastar a viés liberal, como não deixaria de ser, que marca essa instituição financeira internacional. Não obstante essa ausência de completa independência do Banco Mundial, o estudo é muito rico em diagnósticos e soluções para a celeuma de programas e políticas públicas no Brasil e, com os devidos cuidados, devem ser considerados em futuras modificações ou reformas na atuação do governo.

Mas, como bem sabemos, as decisões políticas fazem uma escolha seletiva dos dados técnicos. Vamos observar a escolha do governo brasileiro.

sábado, 13 de janeiro de 2018

Boas vindas


O título deste blog que ora inauguramos não é só uma provocação a respeito de uma condição humana claramente presente neste nosso mundo e persistente em números alarmantes em nosso país, mas antes uma indagação reflexiva na busca de compreensão desse fato, cuja existência, se amplamente aceita, é raramente bem entendida.

Este será um espaço para análise crítica de estudos, reportagens, publicações, livros, todo material da literatura sobre combate à pobreza, desenvolvimento econômico inclusivo, medidas de pobreza e de desigualdade.

Na sociedade moderna, a pobreza não é fácil de ser definida, o que leva a avaliações controversas de quem é realmente pobre e que variáveis devem ser consideradas. As balizas definidas pelos indicadores nacionais e internacionais para apontar quem é pobre estão distantes da perfeição e sempre envolvem alguma definição metodológica arbitrária. No entanto, melhor alguma medida, mesmo que falha, do que medida nenhuma, uma vez que decisões de políticas públicas voltadas para esse público são necessárias nas diversas nações. Falaremos dos indicadores existentes na teoria e daqueles aplicados na prática.

Se mensurações de pobreza são problemáticas, mas ainda o é a criação de políticas sociais para erradicar à pobreza. Entendemos que, se o mercado é importante para gerar riqueza, ele por si só não é capaz de oferecer mecanismos para que essa riqueza alcance a todos. Por meio da sua função redistributiva, o Estado tem, portanto, papel crucial na minimização das falhas de mercado. Logo, traremos análises sobre as políticas existentes no Brasil e no exterior.

Não há como falar de pobreza sem relacioná-la a algo maior, que é o desenvolvimento econômico. Crescimento econômico dos países não necessariamente implica em desenvolvimento social e, muito menos, em redução da proporção de pobres. Principalmente, em cenários de desigualdade, crescimento econômico geralmente concentra ainda mais a riqueza, mantendo inalterada a situação dos mais pobres. Tendo em vista isso, este blog também se interessará em expor as alternativas de crescimento econômico que contemple também todas as parcelas da sociedade.

A pobreza é um fato de natureza multidimensional e seu estudo exige uma abordagem interdisciplinar. Para isso, os autores deste blog, um economista e uma cientista política, buscarão contribuir com uma visão diversificada sobre o tema, disseminando conhecimento e promovendo discussões construtivas.

Esperamos que gostem e participem!